sábado, 12 de outubro de 2013

Cultura, intelectuais e luta ideológica


Antonio Gramsci
Antonio Gramsci


Cultura é uma palavra de difícil definição. Isso ocorre em parte em razão de seu intricado desenvolvimento histórico (Raymond Williams, em Marxismo e Literatura, apontou a impossibilidade de se fixar esse conceito sem coloca-lo em um contexto histórico específico), mas principalmente porque passou a ser usada para referir-se a conceitos importantes em diversas disciplinas intelectuais e em distintos e incompatíveis sistemas de pensamento.

Por Ângela Almeida


Entre os mais notáveis fenômenos intelectuais das últimas décadas, temos a ascensão, em instituições de ensino superior, da nova disciplina dos estudos sobre cultura. 

“Nova” porque esses estudos propriamente ditos nunca foram simplesmente o estudo da organização da “cultura”, mas sim, desde o início, um programa de oposição à visão de cultura como erudita (por exemplo, a atuação de F. R. Leavis e seu círculo na Inglaterra), deliberado, dirigido, de investigação empírica e teórica.

Foi somente a partir da década de oitenta, que essa disciplina desenvolveu-se a ponto de ocupar boa parte da agenda das atividades próprias de instituições de ensino superior: diploma da especialidade e programas de pós-graduação; uma nova geração de professores pós-graduados na disciplina; associações profissionais, conferências, rede de especialistas que interligam continentes.

Editoras dedicam catálogos inteiros à produção escrita de estudos sobre cultura que, neste momento, incluem não só a pesquisa criativa realizada neste campo, mas também histórias sobre a própria disciplina, grossos volumes sobre a matéria e guias de leitura que são verdadeiros blefes. São volumes nos quais, por exemplo, dois dos precursores dos estudos culturais mais frequentemente citados – Antonio Gramsci e Raymond Williams – foram transformados simplesmente em pensadores culturais, embora ambos fossem intelectuais politicamente ativos.

A grande popularidade dos estudos constitui uma realidade impressionante, mas não devemos nos apressar a celebrá-la como uma simples história de progresso. Conquanto reconhecendo as realizações individuais e coletivas que esses estudos tornaram possível, precisamos parar por um momento e fazer a necessária reflexão crítica sobre a lógica geral do projeto como um modo de análise da cultura, e sobre a denominada política de cultura.

A definição clássica do que passou a ser denominado “estudos culturais” coube a Raymond Williams: tais estudos investigariam a criação de significado em e como parte formativa de um “estilo de vida completo”, de toda a faixa de formação de sentido (descrições, explicações, interpretações, avaliações de todos os tipos) em sociedades humanas entendidas como organizações humanas materiais na história.

Antes de qualquer coisa, portanto, os estudos exigiam uma expansão drástica do campo de análise, transcendendo as fronteiras mantidas pela crítica literária, da qual emergiram: são candidatos à análise todos os significados sociais.

Não obstante, essa ideia de campo de estudo expandido e uniforme é mais uma questão de princípio do que prática concreta. Ninguém, nenhuma coletividade profissional, pode pretender estudar “tudo”, e é contraditória em si mesma a ideia de uma seleção realmente indiferente de materiais. Há opções básicas a fazer e, a despeito da variedade de suas possíveis realizações e da diversidade de circunstâncias institucionais, os estudos em causa parecem bem firmes em seu senso de prioridades. 

Seu campo principal de análise tem sido as formas práticas e culturais de “massa” do capitalismo avançado – cinema, televisão, jornalismo, publicidade e consumismo. Seu principal tópico polêmico tem sido o de que tal cultura não é um mero ópio do povo, habilmente preparado para induzir passividade em uma massa homogeneizada, mas, ao contrário, que a participação popular nela é ativa, deliberada, seletiva e mesmo subversiva.

Essas noções interligadas de campo e perspectiva são cruciais para qualquer teoria socialista de cultura. Se aquelas proposições dogmáticas de cultura fossem realmente válidas – e alguns marxistas aproximaram-se muito dessa opinião – então o entendimento de socialismo como sendo a emancipação da classe operária por seus próprios meios pouco mais seria que uma religiosidade sectária. 

Quando Antonio Gramsci afirmou que todos os seres humanos são intelectuais, embora só a alguns sejam atribuídos função social e status de “intelectuais”, ele se expressou exatamente nesse sentido. O aspecto decisivo da formula de Gramsci é seu caráter duplo: ele afirma não só a possibilidade material da libertação, mas também o fato comprovado da dominação. O problema é que a principal tendência dos estudos culturais adotou uma ênfase diferente: na medida em que insistem, unilateralmente, no elemento ativo e crítico das práticas culturais populares, tendem a ignorar as esmagadoras realidades históricas de desigualdade, subordinação e dominação que as condicionam. 

Ainda, na medida em que negligenciam integrar as formas e práticas tradicionais da cultura em seu campo de análise, comprometem sua própria ambição teórica, que é a de analisar “estilos de vida completos” ou, em termos mais precisos, as relações de cultura em sua totalidade. 

Uma minoria nos estudos culturais resiste a essas tendências, mas sem muito sucesso. E uma das acusações que faz, com razão, à corrente majoritária é a de “populismo”. Mas o “populismo”, em todas as suas variações, vê a si próprio como oposição política. Outra acusação, ainda mais grave, que pode ser feita é que, uma vez que a maior parte da cultura metropolitana se caracteriza pela diversão como mercadoria, pela atividade de subsistência estilizada, constituindo um mercado de “estilos de vida”, a inclinação espontânea dos estudos culturais é, no mínimo, conformista.

Certo que esta versão é a do pior caso possível. E contra ela deve ser apresentada a prova de notáveis energia e talento e folha-de-serviço. Mas isso leva à seguinte reflexão: os estudos culturais pertencem necessariamente à esquerda? Ou, como dizem repetidamente, em uma frase ao mesmo tempo enfática e evidentemente vazia: são “intrinsecamente políticos”?

Não há dúvida de que esses estudos tentaram promover aspirações emancipatórias (socialistas, feministas, antirracistas, anti-imperialistas). Sua intervenção foi, nesses sentidos específicos, substancial e política. Mas é mero romantismo continuar a pensar neles como “uma intervenção”. 
Eles constituem agora uma atividade acadêmica reconhecida, e esta, quaisquer que sejam seus méritos intrínsecos, não é, de maneira nenhuma, a mesma coisa que um projeto político.

O que acontece quando uma tendência para oposição se transforma em disciplina amarrada a orçamento, que oferece credenciais, reconhecimento, carreiras e financiamento de pesquisas? 
Sem dúvida, os praticantes dos estudos culturais precisam de uma autoconsciência irônica muito mais intensa do que sua nova disciplina “política” parece inclinada a estimular.

A questão passa a ser, então: como podemos analisar a relação entre teoria da cultura e política? Por muito tempo, houve a tendência reducionista de categorizar toda a iniciativa cultural em termos de um esquema (base e superestrutura), determinista e mecanicista, cujo senso de possibilidades humanas começa e acaba com os ganhos e perdas da política. 

Temos agora, entretanto, um reducionismo alternativo, promovido nas instituições de ensino superior, sob a liderança dos estudos culturais e, no mundo em geral, encarados como sensatez pós-moderna. 

Este reducionismo honra todas as manifestações de diferença cultural com a classificação de políticas, estimulando, assim, o particularismo e uma dissociação narcisista da política. Se a primeira reconhece a cultura apenas como instrumento político, a segunda dissolveu por completo a própria possibilidade da política. E, na verdade, caberia argumentar, a possibilidade da cultura em si como campo de luta política.

Uma teoria da cultura que se diga socialista deve reconhecer algumas coisas: primeiro, a importância da cultura como terreno de luta, especialmente na era do capitalismo consumista e da mídia “de massa”; segundo, a legitimidade da cultura “popular” contra a tendência elitista de ignorá-la como uma mistificação narcótica; terceiro, que a cultura popular, na sociedade capitalista, jamais existiu fora das relações de dominação, ou além dos imperativos de reduzir tudo à condição de mercadoria; quarto, que, ainda assim, no contexto dessas relações e imperativos, “as massas” jamais foram apenas passivas e subordinadas e a cultura popular, ao contrário, caracterizou-se por subordinação e resistência.

Os estudos culturais atualmente estão não só fomentando a dissolução da política na cultura, mas, nesse processo, também desperdiçando o legado de seus pioneiros. Eles não deixam espaço para a política além da prática cultural, ou para a solidariedade política além dos particularismos de diferenças culturais. 

Quase não há espaço para uma política de contestação cultural, nem necessidade de luta ideológica e cultural, se toda a cultura popular, abstraída da “alta” cultura e das realidades históricas da desigualdade e dominação, já é ativa e crítica. O maior paradoxo dos estudos culturais é este: eles acabam confirmando e mesmo louvando esse juízo de valor antidemocrático.

Referências

Gramsci, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização, 1995.

Williams, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.

Wood, Ellen Meiksins; Foster, John Bellamy. Em defesa da história: marxismo e pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

(*) Mestra em direito e doutoranda em Letras.

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