(...)A tradição
histórica antidemocrática de transições pelo alto, que exclui a
participação mais efetiva dos segmentos sociais explorados, tão
característica da sociedade nacional, mais uma vez se impôs
politicamente na passagem entre a ditadura e a democracia em 1985. Tal
modo de transição comporta nítidas limitações em termos da
democratização do país. É sempre bom lembrar que o sistema da grande
imprensa (televisões, jornais, revistas, rádios etc), forjado na e pela
ditadura cívico-militar, permanece praticamente intocado até hoje, quase
25 anos depois do fim do regime democrático.(...).”
RUBIM, Antonio Albino Canelas, em prefácio ao livro de JOSÉ, Emiliano.
Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988. Salvador: Edufba,
Assembleia Legislativa da Bahia, 2010.
A mídia hegemônica brasileira, quando conta a história da ditadura,
resultante do golpe militar de 1964, que ela articulou conscientemente e
do qual participou decisivamente, o faz a seu modo, muitas vezes
excluindo sua cota-parte na implantação daquele regime de terror e
morte. É como se nada daquilo tivesse a ver com ela. O que é,
obviamente, uma mistificação. Em outro momento dessa série, revelei a
natureza golpista de sua intervenção naquele episódio, sua apaixonada
participação na derrubada de um governo legítimo, como o de João
Goulart. Ou como o de Getúlio Vargas. Preocupação com legitimidade ou
legalidade nunca foi o seu forte.
Neste texto, discuto como se deu a convivência da imprensa hegemônica
com a ditadura, de modo a desmontar a ideia de que toda a imprensa viveu
sob censura prévia e de que ela sempre lutou contra a censura, e
bravamente. Devagar com o andor, que o santo é de barro. Não é
necessário muito conhecimento sobre o período de 1964 a 1985 para
perceber que houve censura no Brasil. Disse censura, e não censura
prévia. A existência da ditadura fala por si. Ninguém cria livremente
sob um regime dessa natureza, ninguém escreve livremente numa fase
dessas. Estamos no território das obviedades, necessárias, no entanto.
Antes ainda que se fale propriamente da relação entre a mídia hegemônica
e a ditadura, aconselha-se a que situemos os diversos períodos da
ditadura, rapidamente que seja. Entre 1964 e 1968, costumo dizer que a
ditadura viveu um dilema hamletiano: ser uma ditadura pra valer, ou
combinar ditadura e legalidade. A Constituição de 1967 foi um esforço
para combinar legalidade com arbítrio, se é possível isso. Diante do
início das mobilizações populares, particularmente do movimento
estudantil, a ditadura resolve radicalizar, e acaba com seu dilema. Para
não anistiar o período, lembremos que a ditadura já havia matado 39
pessoas.
O AI-5 evidencia que foi rompida qualquer dúvida: agora, era ditadura,
sem tirar nem pôr, tempo em que o filho chorava e a mãe não via. A
partir de 13 de dezembro de 1968, o tempo fechou. Tortura, mortes,
desaparecimentos, fim de qualquer legalidade. Período de Médici, tempo
de Murici, cada um cuide de si. Ditadura sem freios, se é possível
freios em ditaduras. Aqui, nessa fase, o maior número de assassinatos e
desaparecimentos.
Veio Geisel, em 1974, e a abertura lenta, gradual e segura. Início do
que poderíamos chamar transição pactuada, e uma transição ainda marcada
pela presença de prisões, torturas, desaparecimentos, e quando o estrato
militar travou uma dura luta interna entre os que pretendiam, a médio
prazo, passar da ditadura para um regime legal, e os que pretendiam
radicalizar na violência e manter a ditadura.
Geisel venceu a parada, sem que, no entanto, parasse com os
assassinatos. “Não podemos deixar de matar”, dissera ele em depoimento
gravado, como revela o jornalista Élio Gaspari em um de seus livros
sobre o período. A transição pretendida não foi a frio – foi a quente,
regada a sangue, com muitas mortes, podendo-se lembrar o Massacre da
Lapa, em 1976, quando foram mortos alguns e torturados outros tantos
dirigentes do PCdoB. Ou a repressão que se abateu sobre o PCB, que
exterminou dez de seus dirigentes, e que matou Vladimir Herzog. E tantas
outras prisões, de variadas organizações revolucionárias.
Veio Figueiredo, em 1979, e com ele, efetivamente, uma nova fase, quando
a transição passou a caminhar mais aceleradamente, com mais liberdades,
com a anistia que, mesmo parcial, inaugurou um novo momento no Brasil.
Não há como desconhecer que a transição foi impulsionada pela
constituição e mobilização de uma poderosa sociedade civil e, a partir
do final da década de 1970, pela emergência de um movimento sindical de
novo tipo, particularmente na região do ABC paulista, cresceu ainda
mais. Lula surgia, com toda sua carga política e simbólica, um fato novo
na história do Brasil. A ditadura não acabara, mas dava todos os sinais
de que estava no fim.
A campanha pelas eleições diretas foi a pá de cal no velho regime.
Constituiu-se na mais extraordinária movimentação de massas do país, e
não só com o envolvimento das camadas populares, mas, também, com a
participação de parcelas das classes dominantes, que já sentiam que a
espada perdera sua eficácia e se constituía num entrave ao
desenvolvimento de seus negócios.
No plano político, isso se expressou claramente: todo o PMDB, incluindo
seus governadores, participou decisivamente da luta pelas Diretas e foi
decisivo, como a esquerda brasileira também o fez, com muito entusiasmo.
Não cabe aqui o detalhamento disso, por impróprio para os objetivos
desse texto. Tomo apenas o cuidado de dizer que havia muitos setores de
esquerda no interior do PMDB, para evitar simplificações e maniqueísmos.
A campanha foi derrotada, as Diretas não passaram pelo Congresso, mas
foi determinante como sinalização definitiva para o fim da ditadura. Em
1985, Tancredo Neves é eleito indiretamente e, por ironia do destino,
morre. José Sarney assume a Presidência da República, inaugurando o que
hoje já podemos constatar como o maior período democrático de nossa
história.
Agora, então, podemos discutir a relação entre a imprensa e a ditadura, e
desmontar cenários idílicos, particularmente o que coloca, de um lado,
uma imprensa liberal e sacrossanta que se alevantou contra o arbítrio
militar e, de outro, militares e seus censores cruéis, sempre presentes
nas redações, determinando tudo o que devia ou não devia ser editado.
Fosse essa a história, tão assim mocinhos e bandidos, e a imprensa
hegemônica brasileira restaria absolvida de todas suas vacilações,
incongruências, conivências, cumplicidades, complacência e
colaboracionismo diante da ditadura. A história é bem outra. E vamos
tentar contá-la.
Na primeira fase a que me referi – entre 1964 e 1968 – persiste o apoio
dos grandes jornalões à ditadura, mesmo que aqui, acolá surgissem
críticas. É inegável, no entanto, a afirmação de uma imprensa com
capacidade crítica, que revelava autonomia e vitalidade. Podemos lembrar
do Correio da Manhã, sobre o qual falamos mais demoradamente em artigo
anterior; do jornal Zero Hora, de Porto Alegre; das revistas Fatos e
Fotos, Veja e Realidade e, também, dos jornais Folha da Tarde e Última
Hora, em São Paulo.
A conjuntura de uma ditadura que preservava algumas legalidades
favorecia isso. Num juízo rigoroso, a imprensa hegemônica ainda não fora
posta à prova pra valer. Isso aconteceria no pós-1968, com a edição do
Ato Institucional nº 5 (AI-5). Aí, então, se tomaria conhecimento de
quem era quem, se saberia quem topava enfrentar a ditadura ou não. E
pode-se dizer, com tranquilidade, que a maioria não topou, deu o seu
aval à ditadura e, para ser justo, o fez conscientemente, não apenas
pela existência da censura. Tratou-se de uma reafirmação da posição
hegemônica da mídia que, afinal, havia contribuído decisivamente, como
já dito, para o golpe de 1964.
Do AI-5 em diante, e até o final dos anos 1970, predomina um padrão que
Bernardo Kucinski denomina complacente, e que eu preferiria chamar de
complacente-engajado, no sentido de que a mídia hegemônica, na
esmagadora maioria dos casos, estava engajada no projeto da ditadura,
fez uma opção política por ele. Nessa fase, os dois atores coabitavam
com tranquilidade. A mídia não precisava de censores em suas redações,
bastava um piscar de olhos dos generais, um simples bilhetinho, como era
comum, às vezes de um funcionário subalterno, e ela se dispunha a
pressurosamente obedecer. Não imaginem que exagero. Há uma vasta
bibliografia a respeito, parte da qual está ao final desse texto.
Faço o alerta de Beatriz Kushnir em seu notável livro Cães de Guarda –
Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988: não se queira
que os jornalistas propriamente ditos estivessem a favor da ditadura ou,
ao menos, que a maioria deles estivesse. O sistema, para recorrer a um
palavrão antigo, os aprisionava. Dito de outra forma, os patrões,
baseados em editores fiéis, exigiam aquela linha editorial, da qual não
era possível fugir, ou era muito difícil fazê-lo. Quando podiam, os mais
conscientes tentavam encontrar frestas por onde noticiar o que a boa
consciência mandava.
O que predominou, ao contrário do que a interpretação dada hoje
pretende, no entanto, não foi propriamente a censura, mas a autocensura.
Diria que foi sendo construída uma rotina produtiva que já a incluía.
Uma espécie de alter-ego censorial determinava tudo. Para além dos
editores, os jornalistas foram se amoldando àquela situação,
entronizando as proibições, sem que necessariamente elas precisassem ser
tão expressas.
Já estava mais ou menos posto que não era possível falar sobre dom
Hélder Câmara, por exemplo, e sobre ele não se falava, e ponto final. A
ditadura não queria que se falasse de dom Hélder de modo nenhum, nem que
fosse contra. Nelson Rodrigues, amigo de Médici, conseguiu uma
autorização especial para continuar a falar do bispo. São as estranhezas
da ditadura e daquela estranha relação.
Principalmente entre 1972 e 1975, as principais redações recebiam
telefonemas proibitivos, além dos bilhetinhos da Polícia Federal, e isso
bastava para que a ditadura fosse obedecida, para que os interesses se
tornassem comuns, se comuns não fossem.
A partir dos bilhetinhos e dos telefonemas foi se afirmando um manual
não escrito de procedimentos, às vezes ampliado pelas próprias redações,
tal o conformismo. Essa rotina, dos telefonemas e dos bilhetinhos,
persistiu até 1978, e o livro de Paolo Marconi constitui um documento
raro quanto a isso, A Censura Política na Imprensa Brasileira –
1968-1978.
A cumplicidade da mídia hegemônica no curso da ditadura foi escandalosa
e, sem incorrer em qualquer tentação panfletária, verdadeiramente
criminosa, especialmente quando serviu de suporte para legalizar as
mortes cometidas pelos centros de repressão abertos ou clandestinos.
Aqui, não há como tergiversar. A ditadura elaborava a farsa de que um
preso político barbaramente torturado e morto tinha sido ferido por seus
companheiros quando fora cobrir um ponto, entregava o release à
imprensa, e tudo corria no melhor dos mundos. E certamente nossa mídia
achava que podia lavar as mãos.
É provável que em alguns jornais, não sei se nas redes de televisão,
houvesse alguma repugnância por esse procedimento, malgrado o adotassem
porque era quase a regra, auto-assumida. Em outros, como no jornal Folha
da Tarde, na sua segunda fase, após o AI-5, os assassinatos eram
recebidos com alegria, e mais do que isso, a publicação contava com
muitos tiras na redação – era, como se dizia à época, o jornal de maior
tiragem, exatamente por conta do número de policias na redação.
Alguns dos carros da Folha da Tarde foram queimados por organizações
revolucionárias de esquerda, e isso mereceu editorial assinado por
Octávio Frias de Oliveira em que afirmava que o Brasil estava muito bem e
“a subversão, que se alimenta do ódio e cultiva a violência está sendo
definitivamente erradicada, com o decidido apoio do povo e da imprensa”
(publicado na Folha da Tarde e Folha de S.Paulo, 22/9/1971, conforme
Beatriz Kushnir).
Não se deve buscar, no entanto, publicações isoladas para explicar o
colaboracionismo – outro termo antigo, mas apropriado. Ele era
relativamente generalizado, embora não fosse levado ao extremo da
militância policial do grupo Folha, inimigo declarado da esquerda,
parceiro declarado da ditadura.
No mesmo livro de Kushnir, há trechos de um depoimento de Jânio de
Freitas, publicado pela Folha de S.Paulo de 15 de dezembro de 1998, em
que ele, com sua coragem e honestidade de sempre, explica que se a
imprensa manifestou aqui e ali sua contrariedade com aspectos do AI-5,
mas não foi contra o seu sentido geral, e não seria possível, como diz,
ser contra o AI-5 sem ser contra o regime. “E a imprensa, embora uma ou
outra discordância eventual, mais do que aceitou o regime: foi uma arma
essencial da ditadura.”
E aqui afirma o que se conhecia, mas que hoje talvez não seja
devidamente enfatizado: o Jornal do Brasil foi “o grande propagandista
das políticas do regime, das figuras marcantes do regime, dos êxitos
verdadeiros ou falsos do regime.” Um dos grandes, seria melhor dizer,
para não ser injusto com alguns outros, como O Globo, O Estado de S.
Paulo e a Folha de S. Paulo, este já bastante lembrado.
Um dos sinais mais evidentes do colaboracionismo da imprensa com a
ditadura foi o desenvolvimento de uma forte imprensa alternativa. Surgiu
não apenas pela disposição dos jornalistas que a organizaram. Foram as
condições políticas do período que animaram o seu surgimento – e foi uma
imprensa multifacetada, com algumas publicações de natureza nacional,
outras regionalizadas, com uma impressionante diversidade, que tratava
das questões culturais às de gênero, incluía o homossexualismo e as
mulheres, e, sobretudo, constitui-se em um jornalismo de combate à
ditadura, que enfrenta, confronta todas as dificuldades do período.
O espaço estava aberto devido ao colaboracionismo da imprensa
hegemônica. O espaço para outro tipo de jornalismo, que fosse mais fundo
na análise, que não compactuasse com o regime estava aberto, como
visto. E a maior evidência disso é quando a ditadura cede, quando
Figueiredo assume e a distensão se acelera, e a mídia hegemônica assume
alguns dos temas da imprensa alternativa. Esta, então, definha
irremediavelmente, ali pelo fim da década de 1970, início dos anos 1980.
Havia cumprido o seu papel. Um deles, mesmo que não o quisesse,
denunciar a omissão dos grandes meios de comunicação.
O país deve muito a essa imprensa – os jornalistas que se envolveram nas
muitas publicações do período conseguiram não só engrandecer a
profissão, como revelar coragem política. É inegável que muitas daquelas
publicações tinham a ver com a militância política propriamente dita, o
que só as valoriza, não as diminuem. Afinal, o jornalismo brasileiro
dos dias de hoje e o daquele período não tinham a ver com um tipo de
militância política?
Na análise desse período, cabem algumas palavras sobre o grupo chefiado à
época por Roberto Marinho. A Globo se constitui em rede, ali pelo final
de 1969, graças aos pesados e calculados investimentos da ditadura nas
telecomunicações, e por isso, se antes o grupo já fora fundamental na
operação que resultou no golpe de 1964, agora ainda mais, com o regime
em desenvolvimento.
Podendo chegar a todo o país, tornando-se um império poderoso, o Jornal
Nacional acabou por se tornar o diário oficial do regime, e tanto quanto
o restante da imprensa, também tentava sempre legalizar os crimes da
ditadura, dando mortes por tortura como atropelamentos e simulações
assemelhadas.
O arauto-mor da ditadura, inegavelmente, foram as organizações Globo,
particularmente a Rede Globo. Pretender que a emissora estivesse
solitária na tarefa, no entanto, seria uma injustiça que não deve ser
cometida contra o restante de nossa mídia hegemônica, tão firme quanto
ela na defesa da ditadura. O que cabe acentuar, no entanto, é que as
Organizações Globo passaram a ter um papel acentuado na vida política do
país, mesmo e, quem sabe, principalmente depois que a ditadura foi
derrotada, mas isso é conversa para outro momento.
Censura prévia, bem, claro que houve, nunca na dimensão que pretendeu a
própria imprensa hegemônica a posteriori. Hélio Fernandes enfrentou dez
anos de censura prévia no seu Tribuna de Imprensa, e normalmente não é o
mais lembrado.
De agosto de 1972 a janeiro de 1975, as vítimas foram O Estado de S.
Paulo e Jornal da Tarde. Justo o grupo da família Mesquita, que se
orgulhava de ter participado ativamente das articulações que resultaram
no golpe de 1964. Veja foi censurada de 1974 a 1976. Os alternativos
sofreram bastante também: O Pasquim ficou sob censura prévia de novembro
de 1970 a março de 1975; O São Paulo, de junho de 1973 a junho de 1978;
o jornal Opinião, de janeiro de 1973 a abril de 1977; e o Movimento, de
abril de 1975 a junho de 1978.
Há um dado curioso, embora compreensível. A censura se acentua, como
censura prévia, sob Geisel. Exatamente o ditador da distensão, o que
parece um paradoxo, ou uma contradição em termos. Afinal, a distensão
não devia afrouxar a censura? Em tese, somente como um raciocínio
teórico. Vamos refletir rapidamente sobre isso.
Primeiro, Geisel atendia aos reclamos de uma burguesia já cansada da
espada; segundo, não ia parar de reprimir a esquerda; terceiro,
precisava do silêncio ou compreensão da imprensa quanto a isso; quarto,
tinha de derrotar a linha dura militar. Esta não aceitava a liderança de
Geisel, pretendia aprofundar a repressão e solapar a abertura, mesmo
aquela, tão limitada.
Diante disso, o que fazer com a mídia, tanto a hegemônica quanto a
alternativa? Decide dar sinais duros, levando a censura para dentro de
alguns dos meios, como já falamos. Era uma espécie de
efeito-demonstração, que dissuadia tanto aqueles meios diretamente
atingidos, como os demais a quaisquer rompantes. Mas, não apenas isso.
Estabelecida a censura prévia, a ditadura, então, trabalha no sentido de
provocar a demissão de alguns jornalistas que ocupavam cargos de
direção e que exerciam grande liderança nas redações – Mino Carta, da
Veja, Cláudio Abramo, da Folha, Alberto Dines do Jornal do Brasil –,
para lembrar alguns, e garantir que ascendessem figuras dispostas a
conversar com a ditadura para que a transição fosse ordeira,
relativamente sob controle.
Claro que isso não foi decorrente apenas de uma decisão ditatorial, mas
da própria compreensão, da aquiescência dos patrões, que já se sentiam
incomodados com aquelas lideranças jornalísticas que não aceitavam uma
linha de tanta subordinação e que não queriam fechar os olhos ao
arbítrio e às violações dos direitos humanos.
Golbery, claro, foi o grande articulador disso tudo, e o fez com
competência. A ditadura estabeleceu uma linha direta com os novos
editores, e estes contribuíram muito para que a estratégia da distensão
lenta, gradual e segura fosse bem-sucedida. Eram jornalistas de espinha
mais flexível, capazes de entender as razões da ditadura.
Se olharmos bem, a ditadura retira a censura prévia primeiramente dos
grandes veículos, como O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, em 1975;
Veja, em 1976. O Pasquim teve a censura prévia suspensa em 1975, com a
observação, no entanto, que estava na condição de censurado desde 1970. O
São Paulo só viu levantada a presença dos censores na redação em 1978,
Opinião só em 1977, e Movimento em 1978.
Nada disso se deu de forma linear, e houve atropelos. A crise do modelo
complacente-engajado ganhou mais intensidade com as mortes de Vladimir
Herzog e Manoel Fiel Filho – entre 1975 e 1976. A derrota da linha dura
entrara na ordem do dia, e só ocorre em 1977, com a demissão do general
Silvio Frota.
A partir de então, a mídia hegemônica passa a se sentir mais livre.
Escrevi sobre isso em meu livro Jornalismo de Campanha e a Constituição
de 1988. Era evidente que, nessas novas condições, especialmente quando o
general João Baptista Figueiredo assume, a imprensa não podia continuar
na mesma toada. Afinal, a ditadura estava saindo de cena, e sairia
definitivamente em 1985. Havia uma clara crise de hegemonia no país. A
mídia, por imposição dessa nova conjuntura, havia de acompanhar o ritmo,
salvo a Rede Globo, que tinha de ser muito mais obediente, e era até
mais real do que o rei.
Tudo era mudança na velha mídia, nessa conjuntura. Lembro que o jornal
Folha de S. Paulo, que fora um aliado fiel da ditadura, a partir daí
copia temas e fórmulas da imprensa alternativa. Ao mesmo tempo,
firmava-se um padrão de empresas jornalísticas com ênfase exclusiva no
mercado.
Como o clima político mudara, os temas das denúncias de arbitrariedades,
das torturas, da legislação autoritária, dos escândalos de corrupção
passam a figurar na mídia hegemônica. Como dizia no livro Jornalismo de
Campanha e a Constituição de 1988, a velha mídia, nessa fase,
particularmente os meios impressos, cumpre o papel de ser uma espécie de
aríete do que à época se denominava abertura, a anunciadora de uma nova
hegemonia que se gesta no interior do governo Figueiredo. A seu modo, a
mídia torna-se avalista da transição conservadora que se processa no
país.
Não custa lembrar que, sob Figueiredo, jornais como O Pasquim e o O
Repórter ainda são apreendidos, jornalistas do Coojornal e do Hora do
Povo são processados e presos, a linha dura promove atentados contra
sedes de jornais alternativos e contra banca de revistas, uma bomba
explode na sede da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro e
mata a secretária Lydia Monteiro da Silva, ocorre a tentativa de
atentado no Riocentro, no Rio de Janeiro. Não é pouca coisa. Eram os
estertores dos setores mais radicalizados da ditadura, e a velha mídia,
nesse momento, cumpre um papel decisivo no sentido de denunciá-los.
Cumpria o acordo de facilitar a derrota da linha dura, assegurar a
transição conservadora.
Não é que a imprensa descarte rupturas. Ao longo dos textos dessa série,
tenho demonstrado que não. Ela pode apostar em rupturas, em golpes – no
caso, sempre de direita que ela, para fazer justiça, nunca admite
variações quanto ao lado em que se encontra do espectro político. Quando
seus interesses estão em perigo, e quando em perigo encontra-se o bloco
histórico do qual ela faz parte, ou quando está no poder uma composição
de forças da qual discorde, a velha mídia pode apostar no confronto, no
golpe e na ruptura, para além de quaisquer institucionalidades. E o
golpe de 1964, como a tentativa de 1954, é exemplar nesse sentido.
Na fase final da ditadura, quando se desenhava outra composição de
forças, a mídia hegemônica aposta na mesma política que vinha
desenvolvendo: é possível fazer a transição sem grandes rupturas, e
Tancredo Neves correspondia ao perfil desejado para essa tarefa. Não
importa se, de fato, nas condições dadas, fosse ele de fato o personagem
apropriado para aquela conjuntura.
O que se está dizendo é que a mídia seguia rigorosamente o script
montado até agora: contribuir para que o país saísse da ditadura sem que
isso implicasse quaisquer mudanças mais significativas, ao menos nas
estruturas mais profundas da sociedade. Não será pouco a conquista da
democracia, débil que fosse nos primeiros anos após o fim do regime
militar, mas essa é outra história. Em 1985, terminava um ciclo da
imprensa brasileira, um ciclo nada glorioso, em que predominou o padrão
complacente-engajado, de cumplicidade e colaboracionismo com a ditadura.
Referências
ABRAMO, Cláudio. A Regra do Jogo: o Jornalismo e a Ética do Marceneiro.
Prefácio: Mino Carta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
GASPARI, Élio. A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A
Ditadura Encurralada, A Ditadura Derrotada. Série editada pela Companhia
das Letras (São Paulo) entre 2002 e 2004.
JOSÉ, Emiliano. Jornalismo de Campanha e a Constituição de 1988. Salvador: Edufba; Assembleia Legislativa da Bahia, 2010.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários – Nos Tempos da Imprensa Alternativa. São Paulo: Editora Página Aberta, 1991.
KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda – Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
MARCONI, Paolo. A Censura Política na Imprensa Brasileira (1968-1978). São Paulo: Global Editora, 1980.
*Emiliano José é professor-doutor (aposentado) em Comunicação e Cultura
Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e
integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate
**Publicado na edição 110- da revista Teoria e Debate.