É uma mulher
perspicaz, crítica, de posições francas. Ao mesmo tempo, dona de
alegria e energia contagiantes. No estacionamento, nos restaurantes
ou no próprio ambiente do seminário, é assediada e estimulada:
“Continue firme, guerreira” é o que mais ouve. Vai a todo lugar
do Rio, na zona sul ou na zona norte, dirigindo seu carro e sem medo
das madrugadas. “O povo me protege”, diz.
Após um longo
período de recuperação de delicada cirurgia, Beth sacode a poeira
e dá a volta por cima. Dá uma atenção aguda às coisas da
política, hoje especialmente à instalação das Unidades de Polícia
Pacificadora nas favelas cariocas. Lamenta muito que os programas
sociais dos governos de Leonel Brizola (1983-1987 e 1991-1995) tenham
sido interrompidos e crê que seu Rio de Janeiro seria muito
diferente hoje se tivessem continuado.
Do samba e do povo
brasileiro, “trabalhador e talentoso”, fala apaixonadamente. Seu
novo disco traz 15 canções inéditas de compositores da nova
geração e também Nelson Cavaquinho e Chico Buarque. “Nelson e
Cartola são geniais, mas tem gente renovando o samba”, avisa. O CD
Nosso Samba Tá na Rua é dedicado a dona Ivone Lara, que aos
94 anos continua compondo e cantando, lembrando que ela cantou nos
corais de Villa-Lobos, criados na era Vargas. O álbum tem o sabor da
mistura. E irradia a felicidade que Beth vive agora, ao voltar aos
palcos e às ruas. “Todos os meus discos são um discurso pelo
samba”, proclama.
Revista do Brasil: Quando
Beth Carvalho olha pra trás, qual é a primeira lembrança de ter
botado o pé na carreira musical?Beth Carvalho: O
ambiente em casa sempre foi muito musical. Minha vó tocava violão e
bandolim. Meu pai adorava cantar, era um homem moderno, me deu discos
de João Gilberto e Dorival Caymmi. Minha mãe adorava ópera e
cantava músicas do Orlando Silva. Minha irmã Vânia Carvalho também
canta muito bem, até gravou um disco de samba.
Eu
cheguei a estudar piano, dava aulas de violão, frequentei as rodas
da turma da bossa nova. Tanto a música como a política vêm do
berço. Meu pai era de esquerda, foi perseguido pela ditadura, era
varguista, brizolista, janguista e também admirava muito o (Luiz
Carlos) Prestes. Minha mãe sempre estava do lado dos pobres. Esse
era o ambiente em casa, boa música e política de esquerda.
Revista
do Brasil: Quando você desponta com Andança no
3º Festival Internacional da Canção, em 1968, abriu-se uma cortina
na sua vida?Beth Carvalho: Ficamos em terceiro lugar
com
Andança. Mas ficar atrás do Tom (Jobim) e do Chico
(Buarque), com
Sabiá, e do (Geraldo) Vandré, com
Caminhando,
era como vencer. Éramos novatos, só ficamos atrás de monstros
sagrados, e portanto radiantes. Andança colou no coração do povo.
Uma toada moderna, mas é uma toada.
Revista do
Brasil: O novo disco Nosso Samba Tá na Rua traz
um leque de compositores, de Nelson Cavaquinho a uma novíssima
geração de sambistas. Como é sua relação com esses
compositores?Beth Carvalho: É total. Acyr Marques,
autor de
Coisa de Pele, poeta genial, era motorista de ônibus.
Zeca Pagodinho era feirante e foi apontador do bicho. Almir Guineto
era lixeiro da Comlurb. Marquinhos PQD, paraquedista. Essa gente está
criando brilhantemente, tudo gente do povo, tem o proletariado na
veia, sua visão do mundo.
Minha relação com os
compositores é profunda, não sei me relacionar superficialmente com
ninguém. Talvez eu seja a intérprete que mais teve relações
profundas com os compositores. E eles me amam também porque me
consideram a intérprete deles. Quanto eu interpreto, interpreto o
compositor, sou fidelíssima ao que ele faz. Claro que tem o meu eu,
em algumas músicas me identifico com aquela história. Outras não
têm a ver comigo, mas eu interpreto o autor. Eles ficam muito
felizes porque se sentem representados, eu não deturpo o que
fazem.
Revista do Brasil: O samba está se
renovando, tem uma nova geração surgindo?Beth Carvalho:
Está se renovando completamente. Eu defendo à beça essa gente
nova, porque há uma turma que só dá valor a Nelson Cavaquinho e
Cartola, que são geniais, e fica aí. E assim como Cartola, que era
pedreiro, e o Nelson, que era soldado da PM, esses mais novos têm
origem proletária. Precisamos valorizar também os que estão aí
criando, renovando o samba.
Revista do Brasil:
Você é carioca, da Gamboa (bairro da região central), e aqui
nasceram dois estilos que dialogam muito entre si, o samba e o
choro.
Beth Carvalho: O choro é uma grande escola, deu
Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, uma desbravadora, revolucionária,
que enfrentou preconceitos da elite e o próprio marido para fazer
música e vincular-se aos músicos negros e de origem humilde. Só
que eu acho que alguns têm preconceito em relação à percussão.
Fico chateada, pois ela é a alma do negócio, no samba, no forró,
no baião. E olhe que eu sou de harmonia, toco violão e cavaquinho,
dou o maior valor à harmonia, mas a percussão, principalmente no
samba, é o que enriquece profundamente.
Revista do
Brasil: Esse clima de felicidade do novo CD expressa a
superação de um momento difícil, de problemas de saúde? O Zeca
Pagodinho até lhe deu um rosário verde e rosa...Beth
Carvalho: Também, e principalmente. Mas eu já tenho esse
espírito naturalmente. Sou uma pessoa pra cima, não tenho tendência
a ficar deprimida, não é meu temperamento. Realmente, o que passei
foi bastante doloroso, muito sério, mas tive tanto amor das pessoas
por mim, dos meus amigos, meus parentes, dos compositores, do meio
artístico... Durante esses dois anos que passei de cama, não fiquei
um dia sequer sem receber visita! Quando saí dali tava de alma
lavada, o resultado da operação deu certo, pois existia o risco de
eu não mais voltar a andar. Havia essa possibilidade. Então, botei
o bloco na rua mesmo,
Nosso Samba Tá na Rua! E gravei um
samba lindíssimo, que acho que é o meu estado de espírito agora,
chamado
Tô Feliz Demais, do Edinho do Samba, compositor da
nova geração, que tem uma frase que acho fantástica: “Desta vez
a felicidade exagerou comigo”.
Revista do
Brasil: Qual é a marca principal do novo CD?Beth
Carvalho: É a valorização do povo brasileiro, sempre. O
compositor de samba é, em sua maioria, seu representante legítimo,
com raras exceções. E eu sempre valorizei muito as qualidades do
povo brasileiro. Trabalhador, talentoso, criativo. Uma capacidade de
improvisação enorme, um talento enorme. Veja o repente nordestino,
é uma maravilha! Uma vez ouvi uma frase tão bonita: “O povo não
decora a sua casa, enfeita”. Lindo! Desde criança eu tenho essa
coisa com os mais pobres, os menos favorecidos. Não sei se foi a
criação que recebi em casa, minha família sempre favoreceu os
pobres, sem demagogia. Esse CD é mais uma vez uma homenagem e uma
declaração de amor pelo povo, por meio do samba.
Revista
do Brasil: Como pintou esse nome?Beth Carvalho:
É como se fosse uma passeata que estou fazendo com o samba,
colocando o samba na rua com vários temas. O CD tem o tema da
negritude, tem sambas carnavalescos, de bloco, os clássicos como
Nelson Cavaquinho e Chico Buarque, tem o tema feminino e a presença
da Mangueira, que é a minha escola. E é uma passeata. Alegre, com
energia, com a marca do povo.
Cada disco que faço é um
discurso pelo samba. A música
Nosso Samba Tá na Rua é uma
obra-prima. Genial quando diz “vem de Deus esse som que a gente
faz, nosso samba tá na rua” ou “de presente o moleque pede ao
pai um cavaco, um pandeiro e ele sai, nosso samba tá na rua”.
Então, é um discurso pelo samba. E com vários estilos, samba de
bloco, partido-alto, samba-canção. Além disso, eu sempre procuro
abordar vários temas, e isso depende muito do compositor, mas nesse
disco a gente conseguiu.
Revista do Brasil:
Uma música começa com o coral cantando “Mandela”. Qual o
significado da escolha?Beth Carvalho: É minha enorme
admiração pelo (Nelson) Mandela, uma exaltação à negritude. E
descreve de uma maneira muito original as coisas da cultura africana,
da cultura negra, da culinária etc., fala de camarão com chuchu.
Fala também “olha que negro é lua africana, é o sol que vem de
Havana, é o fim da minha dor” (cantarola). Quando eu gravo essas
coisas é também pra bater de frente com o racismo que
existe.
Revista do Brasil: Como você
analisa a política de cultura?Beth Carvalho: No
geral, percebo que há um esforço bem-intencionado. Mas a herança é
tão pesada que precisamos fortalecer e apoiar muito mais a cultura
brasileira, os criadores, a arte popular. Há um esmagamento do nosso
cinema, os filmes norte-americanos controlam mais de 90% da exibição.
Nosso povo não se vê nas telas. Há uma reação, mas falta muito.
Há poucas bibliotecas, são mal equipadas, nossa taxa de leitura é
baixíssima. Nosso povo, que é praticamente proibido da leitura de
jornal. Faz falta um jornal popular, nacional e democrático no
Brasil, como foi o
Última Hora, criado pelo Vargas, que
também nacionalizou a
Rádio Nacional, criou a
Rádio
Mauá, que tinha, inclusive, a participação dos sindicatos de
trabalhadores. Também foi o Vargas quem criou o Instituto Nacional
de Cinema Educativo, sob a direção de Roquete Pinto e Humberto
Mauro, e o Instituto Nacional de Música, chamando o Villa-Lobos para
dirigir. Aliás, a dona Ivone Lara, a quem dedico o novo CD, cantou
nos corais do Villa-Lobos. Ela é dona dos “laraiás” mais
bonitos do Brasil...
Revista do Brasil: O
que achou de Lula ter retificado sua opinião sobre Vargas,
elogiando-o como um grande presidente?Beth Carvalho: Uma
questão de justiça. É por isso que eu gosto do Lula. Afinal, eu
gravei um disco inteiro, com o João Nogueira, com músicas da era
Vargas, que tentaram destruir (O Grande Presidente, de 1989, durante
a campanha do Brizola). Em boa medida, muita coisa está sendo
retomada, como a indústria naval, que já foi a segunda do mundo com
o Vargas e agora está criando empregos, soberania.
Foi ou não
na era Vargas que nasceram a Petrobras, a Vale do Rio Doce, a
Siderúrgica de Volta Redonda, os direitos trabalhistas, o direito de
voto para a mulher, a licença-maternidade, o Teatro Experimental do
Negro, quando os negros entraram pela primeira vez no Teatro
Municipal do Rio? Acho que o Lula está corretíssimo. Eu fico triste
porque percebo que estão tentando acabar com a Voz do Brasil, que
leva informação aos brasileiros que não podem ler jornal e que
vivem nos grotões. Isso também foi o Vargas quem criou.
Revista
do Brasil: Você teve uma profunda amizade política com
Leonel Brizola (1922-2004), que faria 90 anos em janeiro. Como você
avalia a política sem sua presença?Beth Carvalho:
Lamento demais, até hoje, a perda do Brizola. É como se fosse
um pai para mim. É como a perda de Getúlio Vargas. Eu tinha 10 anos
quando o Vargas morreu e eu chorava copiosamente. Meu pai até me
chamou: “Minha filha, peraí...” Eu sentia a dor do povo. E a
perda do Brizola foi mais dura, porque convivi com ele. A nação
perdeu um grande líder. Um homem preocupado com o povo brasileiro,
amava o povo, honesto, preocupado com as crianças, com a educação,
que é o caminho mais importante do país – sem educação a gente
não vai para lugar algum. Se tivessem continuado os Cieps (Centros
Integrados de Educação Pública, com jornada integral e diversidade
de atividades, ideia de Darcy Ribeiro introduzida nas gestões de
Brizola, no Rio), não teríamos hoje uma geração de crack,
teríamos uma geração de Cieps. É muito difícil surgir outro
Brizola.
Revista do Brasil: Você se
relacionou e se relaciona com homens como Fidel, Chávez, Brizola,
Lula e na música com Nelson Cavaquinho, Cartola, Tom Jobim, e
destaca que homens assim só nascem um a cada século. Qual é sua
reflexão sobre isso?Beth Carvalho: Há os gigantes na
política e na cultura, lutadores de toda uma época, que transformam
a realidade do seu povo, como o Fidel, o Chávez, o Vargas, o
Brizola, o Lula. Mas líderes como esses são uma raridade. Na música
também. Um Tom não nasce a qualquer momento. Veja a qualidade
musical do Nelson Cavaquinho. E era pobre. Cantava, às vezes, por um
prato de comida. E quando tinha dinheiro dividia com amigos
necessitados.
Durante a Jovem Guarda, Nelson passou muita
privação. Cartola também, um gênio daquele trabalhando como
pedreiro, lavador de carro, servindo cafezinho. E doando ao povo
pedras preciosas musicais. É por isso que eu valorizo muito projetos
como o Ciep. O menino pobre, que morava na favela, ia para o Ciep e
era tratado com dignidade. Tinha educação, dentista, música,
esporte, capoeira, piscina, tomava banho, comia decentemente. Em casa
tem de comer em pé ou sentado no chão. Lugar para estudar também
não tem, são obrigados a viver amontoados, num cômodo só. O
Brizola enxergou isso porque amava o povo. A continuidade desse
projeto faria nascer uma nova consciência, favoreceria o nascimento
de novos líderes. Considero um crime o que fizeram contra os
Cieps.
Revista do Brasil: Qual é a
ideia que fica quando se percebe que o imperialismo continua fazendo
ameaças aos povos, inclusive uma cobiça recente sobre as riquezas
do Brasil, o pré-sal?Beth Carvalho: Eu fico muito
assustada porque sei que eles são capazes de tudo. Até de uma
intervenção militar. São capazes disso. Fizeram isso com outros
países, por que não fariam com o nosso? Eu admiro profundamente
esses líderes porque são homens que lutam pelo seu país, defendem
seu povo com unhas e dentes, são patriotas. É uma luta muito
difícil porque o imperialismo não é brincadeira, não. A direita
milita 24 horas por dia. Acho engraçado quando eles falam da
militância da esquerda. A militância da direita é 24 horas por
dia. Mas eu tenho esperança no futuro, no socialismo.
Revista
do Brasil: Como você avalia a nova América Latina e o
projeto de integração do continente?Beth Carvalho:
Beleza! A integração, porém, não deve se limitar ao lado
econômico e comercial. É preciso avançar também no campo
cultural. Acho a missão da
Telesur importantíssima, pois a
mídia imperial sempre tenta nos separar, trabalha para dificultar a
comunicação entre os povos, leva ao desconhecimento de nossa
história comum. Já a
Telesur promove o conhecimento de
nossos heróis, de Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Abreu e Lima a
José Martí, Bolívar, Pancho Villa, com saci-pererê, com negrinho
do pastoreio. Estou trabalhando num projeto para gravar as canções
revolucionárias de cada país, em forma de samba.
Revista
do Brasil: Carioca, sambista e brizolista, qual é sua
análise sobre as UPPs nas favelas do Rio?Beth Carvalho:
Creio que é necessário levar o poder público a todo o país,
ao contrário da linha do neoliberalismo, que reduziu a presença do
Estado, dos serviços públicos. O resultado nós conhecemos. Mas não
basta a intervenção militar, muito menos se não for sistemática,
agir eventualmente não adianta. Tem de levar escola, saúde, criar
trabalho, melhorar a urbanização, o abastecimento de água, a
coleta de lixo, as moradias, e também fazer a titulação dos lotes.
Acho ainda que o movimento estudantil tinha de estar lá no
morro junto do povo, desenvolvendo programas, levando a universidade
para perto do povo, servindo ao povo. O Brizola foi injustamente
criticado. Ele fez os Cieps, instalou os elevadores em vários
morros. Agora o Lula e a Dilma instalaram os teleféricos no Morro do
Alemão. Isso é positivo, é um sinal de respeito. O poder público
tem de estar permanentemente lá. Se os estudantes subissem com
programas, numa aliança com o povo, ajudaria.
Fonte: Revista
do Brasil