segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Angelina: Desmilitarização das PMs, tarefa democrática pendente


A resistência à tentativa de golpe em 1961 – no momento da renuncia do Jânio –, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, à frente da Brigada Militar do estado, foi traumática para a elite militar que preparava o golpe desde o fim dos anos 1940.

Por Angelina Anjos*, especial para o Vermelho


A Doutrina de Segurança Nacional, que orientava as ações da Escola Superior de Guerra – liderada por Golbery do Couto e Silva e Humberto Castelo Branco – apontava na direção exatamente oposto: a necessidade de absoluta centralização de todo o poder dissuasório do Estado, blindando a este como Quartel General do poder militar.

Tanto assim, que uma das primeiras decisões da ditadura militar instalada em 1964 foi a da militarização das policiais estaduais, sob o comando centralizado das Forças Armadas. A transição democrática, feita num processo conciliatório com as forças do velho regime, não enfrentou o tema da desmilitarização das policias, que sobreviveu como uma herança da ditadura, como uma tarefa democrática não realizada.

Durante o período colonial, a presença da polícia já era evidente no Brasil. Constituída pelas figuras dos alcaides-mor e dos alcaides pequenos ou menores, designações dadas a magistrados municipais, com funções administrativas e judiciais.

Foi com o desembarque da família real em 1808, que a polícia assumiu contornos mais definidos. Para o príncipe Dom João, que mandou organizá-la, deveria ser um mecanismo que o protegesse de espiões e agitadores franceses, dos quais tinha pavor, do que propriamente em um sistema voltado à prevenção e repressão de crimes comuns.

A intendência Geral de polícia da Corte e do Estado do Brasil, teve seu alvará em 10 de maio de 1808, era uma espécie de polícia política do príncipe, tanto interna como externa. A polícia propriamente dita, exercida pela Guarda Real da Polícia da Corte, procedia à ronda da cidade para expurgar vagabundos e criminosos.

Desta vocação militar e política, jamais se apartou a polícia brasileira, do Império aos nossos dias.

Foi a partir da década de 1930, em especial depois da tentativa contra-revolucionária de 1932, que o governo central começou a tomar consciência dos perigos referentes a uma organização policial descentralizada e poderosa. Os constituintes de 1934 declararam que competia privativamente à União legislar sobre “organização, instrução, justiça e garantias das forças policiais dos Estados, e condições gerais de sua utilização em caso de mobilização ou de guerra”.

A subutilização das polícias militares promoveu uma ociosidade incompatível com seus efetivos e as ambições frustradas de seus comandantes, consequentemente, buscaram, para não desaparecer, atribuições novas, que se encontravam, por destinação legal, em mãos da Polícia Civil, nos seus ramos com ou sem uniforme.

Esta situação perdurou até os anos 1950, quando se buscou solução na experiência de países mais desenvolvidos, como os Estados Unidos e o Reino Unido. Missões de policiais americanos e britânicos estiveram no Brasil e policiais brasileiros fizeram cursos e obtiveram informações no Federal Bureau of Investigation (FBI) e na Scotland Yard. Os estudos e relatórios aconselhavam a fusão das duas polícias, numa polícia civil e desmilitarizada.

Este era o cenário quando ocorreu o golpe militar em 1964, a partir daí, o governo federal hipertrofiou as Polícias Militares (estaduais), entregando-as ao Comando do Exército, que, na esteira da ideologia da segurança nacional, passou a treinar e a empregar as Polícias Militares na luta contra a subversão urbana e rural, confundindo-a com seus próprios efetivos.

Até 1984, os governos estaduais não tinham qualquer ingerência sobre as Polícias Militares. Arcavam apenas com o ônus de seus orçamentos. As características do treinamento, os seus efetivos e armamentos dependiam de decisões que lhes escapavam. Assim como o seu emprego. O Secretário de Segurança Pública era uma figura decorativa, possuía um comando muito relativo, os cordéis de comando da Polícia Militar estavam nas mãos de seu comandante, escolhido, pelos governadores, entretanto, com o beneplácito do Ministro do Exército. Do ponto de vista de um governo democrático as conseqüências de semelhante organização, eram evidentemente, as mais desanimadoras.

O Estado brasileiro, ao militarizar as polícias civis, determinou também que os militares tenham justiça própria, nas suas auditorias e tribunais de segunda instância, realizando uma sorte de justiça privilegiada, corporativa, em que os militares são julgados pelos seus próprios pares e não se submetem, como todo cidadão, à Constituição Federal. As PMs se sentem assim mais fortalecidas para atuarem por meio de verdadeiras operações militares, sem controle do poder civil e da cidadania.

O Supremo Tribunal Federal pode e deve ser considerado como um dos responsáveis por essa impunidade. Com fundamento numa modificação apenas de forma do texto constitucional, a propósito do processo de crimes militares em geral, cometidos por policiais militares, o STF desconsiderou o que seja a função de policiamento, entregando os delitos cometidos nessa área das atividades das Polícias Militares a julgamento pelos tribunais das próprias corporações. Validando assim, toda forma de violência sem limites que se pratica contra o povo.

O direito não representa para os regimes ditatoriais tão somente uma “solução mágica” para angariar apoio ou, pelo menos, dificultar oposição. Para que ele possa funcionar de maneira plausível como reserva de autoridade política, é preciso que haja, antes de qualquer coisa, condições de apartar direito e arbítrio, de distinguir entre as normas vigentes e a vontade política que governa. Sem um mínimo de respeito ao Estado de direito, o recurso da política ao direito torna-se inócuo. Da mesma forma que o poder político conserva seus potenciais de coação “aquartelados”, mas prontos para o uso, o direito também deve estar presente como uma fonte de justiça. Mas tais fontes secam rapidamente se ele se torna disponível para qualquer razão de Estado (Habermas, 1997a, página 184). O direito apenas viabiliza a autoridade política porque, em um sentido muito próprio, limita o poder político.

Acrescente-se a isso que o fortalecimento das prerrogativas do governo repercute negativamente no campo dos direitos fundamentais, algo que os ideólogos da segurança nacional no Brasil não se preocupavam em esconder: “A segurança nacional estaria, dado seu caráter coletivo, acima de direitos individuais e comportamentos privados” (Cardoso; Pieranti; Silva, 2007, pág 35).

A desmilitarização das polícias militares no Brasil é meio para a ressignificação democrática, no sentido de que a política relacionada à segurança pública deva ter como valores prioritários a garantia dos direitos humanos, a defesa da cidadania e a valorização da vida. Em que o papel da segurança pública esteja na prevenção de conflitos sociais permeado pela ética e pela valorização dos profissionais, pautada na preservação da segurança humana através da construção de políticas públicas de valorização da vida e dos direitos humanos, visando a implementação de uma cultura de paz.

*Angelina Anjos é assistente social, militante da luta pelos direitos humanos, membro do Comitê Paraense pela Verdade, Memória e Justiça e filiada ao Partido Comunista do Brasil.

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