domingo, 28 de julho de 2013

Angelina Anjos: A infância violada

revista intima em criancas arte Alexandre_de_Maio
Ilustração na Carta Capital: Crianças são obrigadas a assistir às revistas vexatórias das mães e a se despir diante das agentes para poder visitar os pais. Imagem: Alexandre De Maio



 A abordagem sobre a infância, onde quer que se desenrole, envolve aspectos históricos, filosóficos, morais, jurídicos, políticos, religiosos, psicológicos e sociais. Há pelo menos duas décadas é um tema que está presente nas discussões acadêmicas, nas políticas públicas e nos movimentos sociais.

Por Angelina Anjos*, especial para o Vermelho


Próximo de completar 28 anos, o livro “Brasil Nunca Mais” o qual reúne cópias de mais de 700 processos políticos que tramitaram pela Justiça Militar, entre abril de 1964 e março de 1979, é um documento de relatos dolorosos da repressão e tortura que se abateram sobre o Brasil. Período de violações de direitos que não salvaguardou nem a infância.

Em tempos de Comissão da Verdade instituída, fica nítida a importância de esmiuçar e realizar a abordagem da infância na ditadura e o que ainda é legado de um tempo tão sombrio e objeto de perpetuação de condutas equivocadas na atualidade por agentes do Estado.

O livro “Brasil Nunca Mais” denunciou os abusos do Estado brasileiro perpetrados contra a infância: tortura em crianças, mulheres grávidas, abortos, menores torturados, desaparecimentos. Não se tratava apenas de produzir, no corpo da vítima, uma dor que a fizesse entrar em conflito com o próprio espírito. A violação de direito visava imprimir na vítima a destruição moral pela ruptura dos limites emocionais que se assentam sobre relações efetivas de parentesco. Assim, crianças foram sacrificadas diante dos pais, nasceram em prisões (sem crime cometido), menores estuprados e mulheres grávidas tiveram seus filhos abortados.

Incitar a lembrança do livro mestre, espécie de oráculo, que há anos escrito produziu como fruto uma comissão da verdade para tratar o tema da infância, é uma tentativa de re-significar a memória, os acontecimentos relacionados à ditadura, reconhecer que a prática de violação de direitos não pode ser associada a um tempo já findo. Demonstrar que mesmo diante de um país que vive a consolidação da democracia, práticas herdadas nos centros de tortura ainda são condutas hereditárias com outras denominações. Mais que isso, é uma aposta de reparação com a fragilidade e vulnerabilidade da infância, uma proposta de ruptura com estruturas continuadas que evidencie com urgência mudança de conduta dentro do Estado brasileiro.

Em 1973, o governo ditatorial tentou, por todos os meios, sufocar a divulgação dos assassinatos, até hoje impunes, das meninas Araceli e Ana Lídia, ambas de oito anos, violentadas por jovens de ricas famílias mancomunadas com altos escalões do regime. As inúmeras atrocidades vivenciadas pelos adolescentes “delinquentes” no sistema Febem nos anos 1970 podem ser sintetizadas na chamada Operação Camanducaia, em 1974, quando dezenas de reclusos em centros de triagem em São Paulo foram levados de ônibus até uma beira de estrada, na divisa com Minas Gerais, espancados e jogados de uma ribanceira.

Também é indissociável a ação da Organização Pena de Morte, que atuou em Vitória (ES) entre 1989 e 1990, encoberta por autoridades locais, eliminando a sangue frio “meninos de rua”. Com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já completando três anos de existência, em 1993, o país foi abalado pela Chacina da Candelária, um extermínio que culminou com a morte de oito crianças assassinadas por policiais militares enquanto dormiam, no Rio de Janeiro.

Em pleno 2013, crianças ainda nascem em espaços de cerceamento de liberdade, que mesmo que seja em condição ‘apropriada’, em condições de higiene, fazem a estreia no mundo “presas” junto com suas mães. Sem consulta prévia, sem direito a escolha de nascer maculada e, por conseguinte excluídas, alijadas de todo um processo de conquista inerente ao papel da vida. 

Em pleno estado democrático a infância é revistada em penitenciárias, Brasil afora, os filhos dos presos ditos “comuns”, os pobres em geral, os não cidadãos, todos potencialmente vítimas de violações de direitos.

Direitos Humanos decorrem do reconhecimento da dignidade de todo ser humano. São direitos comuns a todos, sem discriminação alguma em virtude de origem, etnia, especificidade de fenótipo (cor da pele, traços fisionômicos, cabelo) nacionalidade, sexo, classe social, nível de instrução, religião, opinião política, faixa etária, deficiências físicas ou mentais, orientação sexual e preconceito. São universais; referem- se à pessoa humana. O reconhecimento desses direitos na Constituição de um país, assim como a adesão aos acordos e declarações internacionais, são avanços civilizatórios no sentido humanista e progressista do termo embora não garanta, por si só, os direitos. No entanto, a existência legal é muito importante, sendo sempre um instrumento de legitimação e um espaço para lutas de reivindicação, proteção e promoção dos direitos de todos.

A discussão da infância violada a partir dos relatos do “Brasil Nunca Mais” não se debruça apenas na lembrança de um passado, mas ainda se revela como prática persistente no cotidiano brasileiro, retocada pelas condições do tempo presente, por óbvio, sofisticando-se em sua forma e seu alcance. É fundamental uma ruptura com a impunidade e, para isso, busca-se reafirmar o vínculo indissolúvel entre a violação de direitos de hoje e a praticada no passado ditatorial recente, no sentido de apontar a necessidade de mudança de conduta do Estado para com a infância, não somente em aspectos de direitos regidos por leis, mas em fazer valer os direitos na prática.

Em tempo algum foi tão importante e propício falar sobre a infância violada como os tempos de comissão da verdade no Brasil, que tem dentre tantas outras atribuições apontar novos caminhos para um país que faça as pazes com sua verdade histórica e promulgue a tão esperada justiça. 

As páginas da ditadura militar no Brasil estão por ser escritas. Somente o Serviço Nacional de Informação (SNI) possui 15 milhões de documentos, precisamente temos uns 50 milhões de documentos a serem pesquisados, espalhados por todo o país. O movimento que ocorre no Brasil é positivo no campo da pesquisa sobre a infância violada. Muitos já afirmaram a necessidade de saber mais, exemplo disso foi o seminário “Infância pela Verdade”, realizado pela Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, em São Paulo, em maio de 2013, que ouviu 50 depoimentos de filhos de presos políticos; o jornalista Luis Nassif produziu para a internet uma série de depoimentos de filhos na ditadura; a TV Record, com a contribuição do jornalista Luiz Carlos Azenha, em junho de 2013, apresentou uma semana de depoimentos sobre a infância torturada, documentários e filmes sendo produzidos.

Objetivamente conhecer o passado para não repetir as práticas nefandas da ditadura que solapou, abreviou, desapareceu com dezenas de vidas humanas. Abordar esses aspectos principalmente para os mais jovens, como espécie de antídoto, contra o fascismo, reverberados em práticas de violações de direitos. É imprescindível vacinar as novas gerações contra as tentativas de apagar de nossas memórias os acontecimentos relacionados à ditadura militar no Brasil que na atualidade ainda sufocam, abortam e esculacham precisamente os mais vulneráveis.
A infância no Brasil deverá ter outro destino que não seja a morte, o tráfico, a exclusão, as prisões, os desaparecimentos, as chacinas, os motins. A sociedade civil organizada e apropriada da verdade histórica será capaz de conduzir um novo tempo, onde nenhuma criança tenha que nascer dentro de prisões, onde a infância não seja revistada como se a suspeita fosse algo intrínseco à pobreza, que a solução não seja a redução da maioridade penal, pelo contrário, que se consolidem políticas públicas de proteção à infância.

O tempo em construção pelos que fazem de suas vidas verdadeiros estandartes pela bandeira dos direitos humanos é um momento onde a liberdade será expressa na consolidação de direitos sociais, políticos, econômicos e acima de tudo de igualdade e solidariedade entre os povos. Esse movimento em que centenas de brasileiros estão conectados, engajados, submersos é que levará o Brasil à sua plena democracia, onde esteja assegurado o sentido pleno da vida humana. Lugar onde a maior riqueza está no DNA daquilo que se fundiu e se refundiu e forjou o povo brasileiro.

*Assistente social, militante da luta pelos direitos humanos e membro do Comitê Paraense pela Verdade, Memória e Justiça.


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