quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Netinho: "Legado da Secretaria é, acima de tudo, salvar vidas"


Mais do que uma proposta inovadora, a criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial é um desafio de alinhamento concreto da nova Prefeitura de São Paulo com os movimentos sociais, a periferia, e as pessoas mais necessitadas da capital.

Por Mariana Viel, da redação do Vermelho


Instituída pelo prefeito Fernando Haddad, a nova Secretaria é comandada pelo ex-vereador Netinho Paula (PCdoB). Em entrevista exclusiva ao Portal Vermelho ele fala sobre as primeiras diretrizes e projetos desenvolvidos pela Pasta. Netinho explica que na maioria das capitais brasileiras a questão étnica é trabalhada em torno de coordenadorias responsáveis pelo envolvimento de outras secretarias municipais no fomento de ações relacionadas ao tema.

“O que o Haddad quer é que além da transversalidade a gente tivesse uma condição própria orçamentária para fazer com que a Secretaria pudesse tocar de fato alguns programas e foi nessa sonância que nós concordamos. Imaginando uma Secretaria que tenha uma capacidade administrativa e também executiva”, afirma.

Para Netinho, a sua origem humilde em Carapicuíba (SP) é o ponto de partida para o desenvolvimento de um trabalho inovador, abrangente e participativo. “Vamos trabalhar de maneira harmonizada com os movimentos sociais, as entidades e também com os partidos que têm uma forte influência na questão da militância étnica na cidade”.

O menino pobre que perdeu amigos para o tráfico de drogas e um irmão de apenas 19 anos para a violência policial, conhece bem a realidade que terá que lidar. Mais do isso, Netinho tem a consciência de que o maior legado da Secretaria é salvar vidas.

“Costumo dizer, junto com o meu amigo Mano Bronw — dos Racionais —, que conseguimos contrariar as estatísticas, em que a regra era ser morto e não passar dos 19, 20 anos. Essa é uma responsabilidade que só aumenta. Diferente de outros gestores que muitas vezes só estudaram o tema, além de ter que estudar, eu vivi tudo isso”.

Leia abaixo a íntegra da entrevista:

Vermelho: Como você organizou as primeiras ações da Secretaria?
Netinho de Paula: É uma Secretaria que tem tudo a ver com o tema ‘linkado’ à minha vida, história e origem. Minha origem é muito humilde, vim da Cohab de Carapicuíba. Fui jovem nos anos 80 quando a segurança pública tinha passe livre para matar a juventude negra da periferia. Vejo isso se repetindo agora e nesse momento sou convidado para assumir a Secretaria que tem a missão de discutir a questão racial na cidade de São Paulo. Considero-me um privilegiado. Depois de ter cantado as discriminações no Negritude, de ter mostrado as diferenças nos meus programas na televisão, posso hoje — no Executivo — exercer essa função. Considero uma missão não fácil, mas muito prazerosa.

Muitas das questões e dos problemas que você terá que tratar fizeram parte da sua realidade. Já pensou na responsabilidade que será lidar com meninos que poderiam ser seus amigos e mudar a realidade deles?
Só não fui um desses meninos que foram mortos ou presos porque a música foi um elemento transformador na minha vida. Mas já não posso dizer a mesma coisa do meu irmão, que faleceu aos 19 anos, vítima da violência policial — foi morto de maneira gratuita. Na época, o braço do Estado não chegava de fato na periferia dando nenhum tipo de oportunidade. Costumo dizer, junto com o meu amigo Mano Bronw — dos Racionais —, que conseguimos contrariar as estatísticas, em que a regra era ser morto e não passar dos 19, 20 anos. Essa é uma responsabilidade que só aumenta porque diferente de outros gestores, que muitas vezes só estudaram o tema, além de ter que estudar, eu vivi tudo isso.
Tenho conversado com a equipe e com todos os envolvidos na Secretaria que a gente não admite e não pode falhar. Entendo que cada falha nos setores da Secretaria é uma vida a menos que a gente consegue salvar e a dar a dignidade merecida.
A função da nossa Secretaria é preparar a cidade para discutir as questões de cotas, a questão do preconceito racial, do racismo, e dessa violência que tem atingido particularmente a população negra.

O menino pobre que vendia balas virou cantor e apresentador. Depois foi eleito por duas vezes vereador do maior município brasileiro e agora foi convidado para assumir um posto no governo municipal. Como estão sendo organizadas as primeiras ações da Secretaria?
Isso foi muito debatido com o prefeito Fernando Haddad quando ele me fez o convite. Segundo o próprio Haddad, as questões étnicas no país e em outras prefeituras giram em torno de coordenadorias, que trabalham apenas de maneira transversal — influenciando outras secretarias a discutirem o tema e fomentarem programas.
O que o Haddad quer é que além da transversalidade a gente tenha uma condição própria orçamentária para fazer com que a Secretaria possa tocar de fato alguns programas e foi nessa sonância que começamos os trabalhos, imaginando uma Secretaria que tenha uma capacidade administrativa e também executiva.

O projeto de lei que cria a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial — que provisoriamente existe em caráter especial — deve ser enviado à Câmara Municipal nos próximos dias. Qual é o formato da Secretaria, orçamento, profissionais envolvidos?
Estruturalmente é uma Secretaria que deve ter de 30 a 40 cargos (entre técnicos e não técnicos). Deveremos ter um orçamento que girará em torno de R$ 80 milhões a R$ 150 milhões por ano, ao menos foi o que propusemos com os programas que já desenhamos. Uma maneira que acho que é muito nossa, comunista, é aproveitar as melhores cabeças pensantes, ideias, projetos e as pessoas mais capacitadas para executar esses programas na Secretaria. Vamos trabalhar de maneira harmonizada com os movimentos sociais, as entidades e também com os partidos que têm uma forte influência na questão da militância étnica na cidade.

Quais são esses programas já ‘desenhados’ por vocês?
Temos alguns eixos estruturantes para a Secretaria. O principal programa que pretendemos implantar em São Paulo é o Juventude Viva, que é um programa que está no guarda chuva da Secretaria Geral da União, sob os cuidados do ministro Gilberto de Carvalho. Esse programa já foi implementado em Alagoas, e São Paulo tem a oportunidade de ser o segundo município do país a receber essas ações. O Juventude Viva possui três eixos: segurança pública, emprego e cultura e lazer. O envolvimento de outras secretarias municipais é muito importante para que ele dê certo.
O que nos resguarda é a questão das chacinas que têm acontecido aqui na cidade de São Paulo. Entendemos que, para esse programa ter sucesso, será necessária a adesão do governo do estado. De maneira preventiva, as secretarias e demais ações do município conseguem dar conta, mas para a questão de reinserção vamos precisar muito de um apoio para que esses jovens sejam aceitos na sociedade e tenham oportunidade de emprego.
Nossa Secretaria está muito voltada para essa tese e esse viés. Temos também a participação da Secretaria de Direitos Humanos e da Coordenadoria de Juventude – que também estarão envolvidas. Acabei de voltar de Brasília ontem [quarta-feira, 30] e eles estão se preparando para vir para São Paulo. Já foi destinada a criação de Grupo de Trabalho para tratar da implantação do Juventude Viva.

Como vocês pretende tratar a questão do fomento à cultura afro em São Paulo?
Temos a intenção, junto com a Secretaria de Educação e Cultura, de termos um canal de televisão que possa ter conteúdos educacionais, de dramaturgia, música, cultura e capacitação étnico na cidade. Para isso, também estamos montando um grupo de trabalho entre essas secretarias para apresentar uma proposta para o prefeito e pleitear esse canal. Acho que isso vai servir de exemplo para as principais cidades do país que tratam essa temática.
Existem canais franceses e alemães na televisão e a ideia é de que a gente tenha um canal com a temática negra, onde estaríamos tratando da questão da diáspora. Esse canal seria uma frequência de TV a cabo que pudesse ser para São Paulo e também em nível nacional. Os conteúdos seriam produzidos em parte pelas secretarias de Igualdade Racial, Cultura e Educação. Também receberíamos conteúdo da África do Sul, dos Estados Unidos, da Europa e demais TVs que têm esse tipo de conteúdo. Seria uma maneira de mostrarmos o que é democracia racial.

Em relação à educação, existe algum projeto pensado nessa área?
A capacitação dos professores da rede pública e a distribuição de materiais com a temática da africalidade é uma questão emblemática para nós. Queremos a implementação da Lei 10.639 — que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira”. Até agora a gente não conseguiu, em sua plenitude, distribuir os materiais e capacitar os professores. Ao chegar de Brasília me reuni com o secretário César Callegari, da Educação, que mostrou toda disposição de estar implantando, talvez até o segundo semestre, os materiais didáticos para a capacitação dos professores e distribuição dos alunos na rede pública. Nossa ideia é que já em nosso primeiro ano, a Secretaria cause um ‘tumulto’ aqui na cidade.

Qual é a importância da integração entre a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e demais setores do governo municipal?
Isso foi uma solicitação do prefeito desde o começo — que fizéssemos essa transversalidade entre as secretaria, mas que também pudéssemos alçar voos maiores e ir aos ministérios que têm programas com as finalidades das secretarias e também manter contatos internacionais.
A primeira ação da Secretaria foi receber a Judith Morrison, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Ela nos deu uma consultoria, explicando os programas do BID e também se disponibilizando a incentivar o Programa Juventude Viva através da nossa Secretaria em São Paulo. Estamos trabalhando bastante e essas são características nossas, saber ouvir e buscar os apoios que consideramos importantes.

Com a sua tarefa na Secretaria, o ex-ministro Orlando Silva — segundo colocado na chapa do PCdoB, nas eleições para a Câmara de São Paulo — assumiu sua cadeira no Legislativo municipal. Qual é a importância da continuidade de um mandato comunista em São Paulo?
Foi uma coisa bem pensada. São Paulo age com a cabeça, com a política sempre à frente. O Jamil Murad, o Orlando Silva, o Vander Geraldo, o Walter Sorrentino e a Nádia Campeão são pessoas que têm na política a missão partidária e, acima de tudo, um plano de desenvolvimento nacional para o país. Ter o Orlando na Câmara Municipal de São Paulo é um privilégio. Ter o conhecimento de um ex-ministro, atuando no parlamento paulistano, em nome do PCdoB, é uma questão de orgulho. Sou parte desse processo e tenho certeza de que o Orlando vai dignificar muito o esse mandato.

Como você vê a relação entre o PCdoB e a Secretaria de Igualdade Racial?
O PCdoB tem dentro da Unegro [União de Negros pela Igualdade] a luta e os destaques para as questões raciais no Brasil — na figura da Olívia Santana, do Edson França; pessoas que batalham dentro do Partido para que essa pauta não fuja. Essa Secretaria é fruto da luta dos movimentos sociais organizados.

Qual deverá ser o legado que você imagina que a Secretaria deixará para São Paulo?
Acho que em quatro anos teremos de fato uma Secretaria bem estruturada e com capacidade de implementar políticas importantes na cidade. Se nesses quatro anos conseguirmos sensibilizar a sociedade paulistana para a temática racial, teremos mais negros empregados, recebendo salários em pé de igualdade, estudando e uma juventude que não estará sendo exterminada. Essa é a nossa função. Acho que é uma das maiores responsabilidades porque o legado dessa Secretaria é, acima de tudo, salvar vidas.

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