segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Quem tem medo do Lobo mau na discussão da cultura?

Por Aluysio, em 08-09-2013 - 13h13

Qual adjetivo melhor se encaixa para descrever João Luiz Woerdenbag Filho? Quase todos já foram usados, mas sem que nenhum o resumisse melhor do que o apelido dado desde os tempos de escola, por conta do macacão pendurado numa só alça e da barba precoce: Lobão. Poeta tão talentoso quanto Cazuza ou Renato Russo, mas superior como músico aos seus principais pares no rock nacional, o BRock, que explodiu nos anos 1980, de lá para cá Lobão ajudou a escrever a trilha sonora de toda uma geração, pranteou camaradas em armas tombados pelo caminho, tentou mais de uma vez o suicídio, enterrou o pai e a mãe exitosos na mesma tentativa, foi preso por uso de drogas como resposta de umstatus quo que criticava, vendeu 250 mil cópias de um disco produzido em parte na cadeia, flertou com a bandidagem e o samba dos morros cariocas, integrou a bateria da Mangueira no desfile do centenário da abolição da escravatura, amou intensamente várias e belas mulheres, fez aquele considerado o melhor show do Hollywood Rock e saiu vaiado do palco no Rock In Rio II, entrou em ocaso junto às gravadoras, largou as drogas e revolucionou a indústria fonográfica ao vender seus CDs em bancas de jornal, devorou livros e fundou uma revista que lançou novos nomes na música, ganhou o Grammy de melhor disco de rock com a coletânea unplegged do seu repertório, se reinventou como jornalista e apresentador de programa de TV, apoiou de graça para depois romper ruidosamente com o PT e a esquerda brasileira, e mais recentemente escreveu dois livros: o primeiro, sua autobiografia, concorreu ao Prêmio Jabuti, já vendeu mais de 100 mil exemplares e agora se prepara para virar filme; enquanto no segundo se propõe a questionar toda a cultura nacional a partir do modernismo de 1922. No momento em que Campos debate seus rumos e desrumos culturais, nada melhor que abrir espaço para quem já vem fazendo o mesmo há tanto tempo, a despeito dos interesses do poder ou das vaidades dos artistas, sem nenhum receio em enfiar a unha encravada nas feridas da cultura brasileira.
Folha Dois – Você disse que tudo que é deve à música e aos livros. A partir de ambos, que tipo de homem se tornou?
Lobão - Um pensador livre.
Folha – Esse tipo de formação autodidata, montada em sensibilidade e curiosidade intelectual pré-socráticas, tende a se tornar cada mais rara no mundo de hoje?
Lobão - Me parece que sim. O próprio índice de leitura mais complexa abaixa a cada dia.
Folha – Compositor de mais de uma dezena de hits da música brasileira e, mais recentemente, autor de dois livros de sucesso, hoje se considera mais músico ou escritor?
Lobão – Eu me considero um homem versátil e faço tudo o que me compete fazer com toda a paixão do mundo. Amo fazer música e amo escrever. As duas funções se alimentam e me enriquecem.
Folha – Esse mesmo duplo na arte, entre música e literatura, não aproxima você de Chico Buarque, um dos seus principais desafetos? Há como viver de escrever verso musicado e prosa literária sem admirar Chico? E o que dizer então de Vinicius de Moraes, sobre quem você escreveu que admirar seria o “fim da picada”?
Lobão - Olha, eu não considero o Chico um desafeto. Tenho carinho por ele. Só não gosto do que ele faz. Agora, se dependesse do Chico para me inspirar a compor ou a escrever, eu teria me tornado um colecionador de selos. A mesma coisa cabe ao Vinicius. Poucas obras me são tão agressivamente repelentes do que as desses autores. Embora eu aprecie os sonetos do Vinicius, não suporto suas canções.
Folha – A outro de seus detratores, você dedicou a música “Para o mano Caetano”. A letra oscila em críticas pesadas e declarações de amor. Numa paráfrase já lugar comum, dá para ecoar Elis, outra sobre quem você se divide entre elogios e críticas: “Porque o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões”?
Lobão - Eu não dediquei nada a ninguém. Eu simplesmente compus uma réplica precisa e direta. Não se trata disso. É mais simples: Eu não pertenço a esse ramo musical/filosófico/estético.
Folha – Sem lugar comum são os diálogos das suas composições. É o caso de “As flores do mal”, do poeta francês Charles Baudelaire, em sua “A queda”; de “Além do bem e do mal”, do filósofo alemão W. F. Nietzsche, na sua “Deus é o diabo de folga”; ou de “El Desdichado”, poema mais famoso de Gerárd de Nerval, outro francês, que gerou sua “El Desdichado II”. Essa erudição é reconhecida por fãs e crítica? E assusta os desafetos?
Lobão - Eu acho muito pouco provável. A crítica é de uma indigência mastodôntica e os desafetos, não raro, inaptos para qualquer apreciação mais honesta e acurada. Só conseguem esboçar cacoetes comportamentais de mal estar. Já da parte dos fãs, existem casos de pessoas que mostraram perceber essas sutilezas. Fato esse que muito me agrada.
Folha – Sua autobiografia, “50 anos a mil” é aberta com você e Cazuza, numa madrugada fria de junho de 1984, no cemitério do Caju, no Rio, chorando e cheirando cocaína sobre o caixão de Júlio Barroso, da banda Gang 90. Até que ponto o prólogo reafirma sua amizade de vida e morte com os dois expoentes do BRock, e até que ponto é para chocar?
Lobão - Nem uma coisa, nem outra. O prólogo tem uma razão estratégica na narrativa do livro, pois quero deixar bem claro que seria ali, naquelas miseráveis circunstâncias, que todos os sonhos de construirmos uma nova geração de estetas e pensadores da cultura nacional estava morta. Não haveria, dali em diante, mais nenhuma possibilidade de um futuro para a música brasileira que não fosse o mesmo do mesmo.
Folha – Você disse ter prometido que o melhor ainda estaria porvir, nos túmulos de Júlio e, depois, de Cazuza, morto em 1990. Como essa expectativa se encaixa naquilo que disse em entrevista linkada em seu site: “Esta é a nossa pior época”?
Lobão - Sim, estamos passando por um dos piores momentos da nossa história. Contudo, pessoalmente, estou vivendo um momento maravilhoso e em plena fase de crescimento artístico. Pena não poder dividi-lo com mais pessoas.
Folha – Além de Júlio e Cazuza, outra morte precoce que você lamenta é a de Renato Russo, em 1996. A partir dessas perdas o BRock perdeu espaço para outros estilos, ou isso aconteceria mesmo se todos se mantivessem vivos e produzindo?
Lobão - Eu afirmei que tudo morreu com o Júlio. O resto foi detalhe. Já estávamos coletivamente mortos.
Folha – Sobre Cazuza e Renato, como vê os autores de “Brasil” e “Que país é esse?” cantando o país governado há 10 anos pelo PT? Acredita que, como você, eles teriam guinado politicamente 180º com a realidade pós-Mensalão?
Lobão - O Renato sempre detestou petistas e era francamente capitalista. Já Cazuza era PT e não sei se teria coragem de mudar de opinião.
Folha – Como alguém que apoiou Lula de graça, desde o segundo turno da eleição presidencial de 1989, quando participou daquele célebre comício na Candelária, com Luís Carlos Prestes segurando o microfone para você cantar “Revanche”, até que esta finalmente se desse em 2002, pode ter se convertido na voz mais contundente contra o petismo entre os artistas brasileiros?
Lobão - O PT é uma farsa e eu nunca fui um fã ardoroso do partido. Apenas lutei para que chegasse ao poder por uma espécie de vez histórica: Eles, os petistas, tinham que mostrar ao que vieram, principalmente com a bandeira da ética e da honestidade. Uma vez ficando bem claro que era uma deslavada mentira e, para piorar, arreganhando um viés neocomunista, eu pulei fora dessa canoa furada o quanto antes. O fato de escrever o “Manifesto” me deu muito mais embasamento sobre a política em geral. Li mais de 60 livros para me nutrir de informações e acabei o livro bem melhor do que comecei.
Folha – Em “Manifesto do nada na Terra do Nunca”, seu segundo livro, você chegou a dedicar um capítulo inteiro a propor a execução da presidente Dilma Rousseff. Mesmo em metáfora, o escritor não encarnou o “Exagerado” de Cazuza?
Lobão - Basta ler com atenção e poderá perceber a pertinência da violência da metáfora. Não. Escrevi com temperança e didática e se usei de cores carregadas foi porque a situação assim exigiu.
Folha – Sobre um dos arquétipos petistas, você escreveu: “o intelectual de esquerda é o campeão mundial da punheta de pau mole (…) Sempre deprimido, paranoico, ressentido, sempre vitimizado por complôs cósmicos, sempre pronto para eliminar suas contradições na base do grito”. Não há exceções menos neurastênicas?
Lobão - Não, por ser um erro basilar. Quem se dispõe a pensar dessa maneira,estará inescapavelmente com alguma séria patologia.
Folha – Diante de tantas críticas a um poder hegemônico tão sensível a elas, não teme sofrer o que chama de “simonalização”?
Lobão - Sou insimonalizável. Pode crer.
Folha – No poema “Aquarela do Brasil 2.0”, que abre o livro, você abriu fogo também contra os evangélicos: “E no cagaço metafísico/ da multidão de contritos telerredimidos/ brota o pavor da morte, da vida, do sexo,/ da doença, da pobreza e do castigo./ Fazendo bispos milionários,/ gângsteres do paraíso,/ lotearem pedacinhos do firmamento/ para histéricos apocalípticos aguardarem…/ o fim do mundo fora de perigo”. Teme o fundamentalismo religioso no Brasil?
Lobão - Estamos entre a cruz e a calderinha. Ou nos transformamos de vez num Cubão ou caímos numa teocracia de quinta.
Folha – Você é carioca da gema, baterista da Mangueira. A última pesquisa ao governo do Rio, colocou Marcelo Crivella na frente, seguido de Lindbergh  Farias e de Anthony Matheus. Com dois evangélicos e um petista liderando, sente mais vontade de continuar morando em São Paulo?
Lobão - Esse panorama não poderia ser mais lamentável. Nada poderia ser pior. Eu amo morar em São Paulo e mesmo se o Rio fosse um lugar razoavelmente aprazível, não me sinto mais morando onde nasci e me criei.
Folha – Seu diálogo em questionamento ao manifesto antropofágico de Oswald de Andrade é ponto de partida, espinha dorsal e último capítulo do seu novo livro. Não é ambição demais ir contra toda a base do modernismo brasileiro de 1922, para tentar justificar suas críticas presentes à cultura nacional que aquele movimento determinou?
Lobão - Pois é, por termos nos baseado todo o nosso caldo cultural na Semana de 22 é que estamos nessa miséria ontológica desde então. Pior é saber que esse culto submisso e medíocre ainda reverberará por muitos anos nas mentes dos intelectuais brasileiros. Problema todo de quem embarca nessa, mas acredito que essa babação de ovo irá esvanescer-se, principalmente com o auxílio do meu livro. Muita gente começou a enxergar com outros olhos o movimento e temos uma razoável chance de nos libertarmos de suas amarras, produzindo uma nova estética, um novo pensamento, uma visão mais certeira de nós mesmos como povo, uma nova forma de produzir cultura. Creio que ficou bem claro a ampla e eficaz defenestração do pensamento do nosso querido Oswald, cometida no último capítulo. Fato este que não precisou lá de muito esforço. Se tivesse o mínimo de suspeita de que pudesse fracassar na empreitada, não me exporia ao ridículo de uma tentativa incorreta.
Folha – Música mais tocada no Brasil dos anos 1980, “Me Chama” poderia existir sem a fundamentação do coloquial feita por Oswald em “Pronominais”, sem acender seu cigarro na brasa dos versos dele: “Dê-me um cigarro/ Diz a gramática/ Do professor e do aluno/ E do mulato sabido/ Mas o bom negro e o bom branco/ Da Nação Brasileira/ Dizem todos os dias/ Deixa disso camarada/ Me dá um cigarro”?
Lobão - Esses caras promoveram um downgrade tremendo na língua portuguesa falada e escrita no Brasil! Temos que lembrar que falar o português correto para esses caras era reacionário! Incitaram uma lusofobia cavalar em nossa forma de pensar. A Semana de 22 foi um mal terrível para toda a cultura do país por gerações e gerações. De outra maneira, se pensasse diferente disso, não seria possível ter tido o meu insight sobre a Terra do Nunca.
Folha – Como está o projeto para transpor “50 anos a mil” ao cinema? O filme sai mesmo em 2014? José Eduardo Belmonte será o diretor e Rodrigo Santoro, Lobão? Pelo menos na vontade do autor do livro e personagem central, em que ele será diferente dos sucessos “Cazuza, o tempo não para” e “Somos tão jovens”?
Lobão - Estão trabalhando no roteiro e deve ser rodado em 2014 para sair em 2015. O resto, não tenho a menor ideia. Quanto ao nível do filme, tenho a sorte de ainda não ter morrido e posso acompanhar com um sentido mais crítico o desenrolar das filmagens.

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