domingo, 12 de maio de 2013

“Lógica da governabilidade é entrave para memória e verdade”




O pesquisador Renan Quinalha, autor do livro Justiça de Transição: contornos do conceito, publicado neste ano em parceria das editoras Dobra Editorial e Expressão Popular, acredita que o Brasil paga o preço por ser o último país da América do Sul a instaurar uma Comissão Nacional da Verdade. Os vizinhos, como Chile, Uruguai e Argentina, que também passaram pelo processo de ditadura militar já estão julgando e condenando os autores de crimes.



O atraso de 30 anos, segundo Quinalha, traz peculiaridades ao processo brasileiro, como a dificuldade de acessar fontes documentais e acervos de informações novos sobre as violações de direitos humanos, dado o largo período de tempo já transcorrido. Confira abaixo entrevista com Quinalha.

Brasil de Fato: Como você avalia o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV) até aqui?Renan Quinalha: Apesar de já transcorrido metade do prazo de seu funcionamento, é bastante difícil fazer um balanço mais detido das atividades da Comissão Nacional da Verdade. A maior parte das investigações da CNV está sendo realizada sob sigilo e sem maior diálogo com a sociedade, então faltam elementos para informar uma análise dessa natureza. De vez em quando, na mídia, aparecem notícias sobre alguma descoberta, normalmente envolvendo os casos mais notórios e conhecidos. Pode-se dizer que a Comissão Nacional da Verdade chega atrasada, em torno de 30 anos após o final da ditadura. Isso acarreta algumas peculiaridades devido a esse contexto histórico e institucional diferenciado. A principal delas é a dificuldade de acessar fontes documentais e acervos de informações novos sobre as violações de direitos humanos, dado o largo período de tempo já transcorrido. Assim, ao contrário de suas congêneres em outros locais do mundo que priorizaram violações a direitos humanos (geralmente direitos civis e políticos), a Comissão da Verdade brasileira promete menos novidades e impactos de ineditismo, sobretudo porque os familiares e algumas iniciativas oficiais de busca da verdade já conseguiram produzir uma quantidade razoável de informações sobre o passado. Mas algumas questões fundamentais, como o paradeiro dos desaparecidos políticos e os nomes dos autores desses graves crimes, ainda precisam ser respondidas.

Assim, sem deixar de fazer o embate político com as pastas militares para ter acesso pleno aos arquivos da ditadura e avançar na apuração das violências, uma das maiores tarefas da Comissão Nacional da Verdade será romper com a tentação da “teoria dos dois demônios” e suas variações, assumindo claramente seu papel de dar voz às vítimas, registrar o trabalho já feito pelos familiares e, sobretudo, oficializar a versão desses setores diretamente atingidos. Para isso, deve também trabalhar do modo mais aberto,transparente, participativo e público possível, evitando cair na concepção equivocada, a meu ver, de que o grande trabalho da Comissão se resume a um relatório final, perdendo de vista que o processo da busca da verdade já é reparador por si mesmo se feito de modo inclusivo e cuidadoso com as vítimas. A CNV pode fazer um grande relatório final e com abertura pra sociedade durante o processo, esses objetivos não são excludentes entre si. Nessa linha, o sigilo deve ser exceção, nos casos em que a publicidade pode atrapalhar as investigações, mas não a regra.

Em palestra no seminário Memória Digital, por ocasião da digitalização dos arquivos do Deops de São Paulo, Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador da Comissão Nacional da Verdade, pediu paciência e confiança na CNV, comparando-a aos outros processos de comissões da verdade ocorridos na América do Sul. Como você faria essa comparação? Quais as semelhanças e diferenças entre a CNV brasileira e as que existiram nos países vizinhos?

É perigoso fazer comparações entre os países ignorando as determinações de correlações de força locais, as particularidades de cada experiência e, sobretudo, o período escolhido para a comparação, sobretudo em um tema tão crítico como o da justiça de transição. De forma geral, os países do Cone Sul fizeram comissões da verdade logo após os primeiros momentos da transição democrática.

A Argentina, por exemplo, instituiu uma Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep) ainda em 1983, tendo sido um dos primeiros atos do Presidente Raul Alfonsín depois de sua posse. O Chile criou a Comissão Nacional da Verdade e da Reconciliação em 1990, por ato do Presidente Patricio Aylwin Azócar, logo após o final da ditadura comandada pelo general Augusto Pinochet. Hoje, esses países estão julgando e condenando seus torturadores, enquanto nós, depois de 30 anos, ainda estamos tentando construir a verdade sobre o período, muitas vezes tendo de pedir licença para acessar a documentação dessa época. Esse tipo de comparação, que denuncia de forma gritante nosso atraso em relação aos nossos vizinhos e as tarefas que ainda temos de cumprir para melhorar nossa democracia, me parece mais interessante para o momento em que vivemos. A era da paciência já durou bastante, agora é preciso mobilização para cobrar do Estado brasileiro não só a verdade, mas o cumprimento da decisão da Corte Interamericana dos Direitos Humanos que condenou o Brasil a remover os obstáculos jurídicos para punir os torturadores, em especial a Lei de Anistia de 1979.

Paulo Sérgio Pinheiro disse, ainda, que não vê necessidade na prorrogação do prazo da Comissão Nacional da Verdade. O que você pensa a respeito? Como você interpreta essa posição do atual coordenador da CNV?
Por um lado, é fato que um dos requisitos para o bom funcionamento de uma Comissão da Verdade, conforme as experiências internacionais sugerem, é um prazo definido e não muito prolongado de tempo dos trabalhos. Essa definição do prazo ajuda a racionalizar as atividades, tornar as investigações mais objetivas e permite uma resposta rápida à sociedade, que já esperou muito tempo para conhecer o seu passado. Mas não se pode admitir que esse tipo de trabalho seja feito às pressas. A presidenta Dilma demorou para nomear os membros da CNV. Antes de iniciar efetivamente as investigações, os comissionados precisaram discutir o regimento interno e o plano de trabalho, além de dividir as tarefas, formar a equipe de assessoria e construir o entrosamento necessário para dar conta das tarefas estabelecidas na lei. Tudo isso atrasou o funcionamento efetivo da CNV. Considerando a amplitude territorial (todo o território brasileiro) e o largo período temporal (1946 a 1988, ainda que o foco principal seja de 1964 a 1985), é razoável prorrogar esse prazo por um pouco mais de tempo, para que o trabalho seja feito com a profundidade que esse tema merece.

O Levante Popular da Juventude e outras organizações reunidas no Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça exigiram a realização de audiências públicas, a entrega de relatórios parciais e a prorrogação dos prazos, entre outras medidas. Como você avalia essas reivindicações à luz dos objetivos da CNV?
São reivindicações importantíssimas, porque baseadas em constatações inegáveis sobre o funcionamento atual da CNV e em críticas construtivas, que expressam o acúmulo político de setores fundamentais do movimento por verdade, memória e justiça em nosso país. A CNV ainda tem muito trabalho pela frente e precisará de todo o apoio social possível. Então é recomendável que saiba apreciar e acolher demandas legitimamente formuladas pela sociedade civil organizada.

Que papel poderia e deveria, na sua visão, desempenhar a Comissão Nacional da Verdade?
A proliferação de Comissões da Verdade estaduais, municipais, em universidades, sindicatos, associações de classe e em outros espaços guarda um potencial enorme de capilarização dos trabalhos da CNV, que pode contar com setores da sociedade civil organizada para repercutir essa pauta. Mas, para isso, a CNV precisa assumir um papel efetivo de coordenação, a fim de evitar desperdício de energias e duplicidades de trabalho. Além disso, a Comissão precisa fortalecer e legitimar o cada vez mais forte movimento por verdade, memória e justiça em todo o país, abrindo-se mais à participação efetiva deste e tomando partido nas disputas travadas com os setores mais conservadores ainda saudosos da ditadura. Essas mobilizações serão importantes não só para a construção de uma nova narrativa histórica para o país, mas também para acumular forças para rompermos a impunidade consagrada hoje na interpretação que o STF deu à Lei de Anistia de 1979.

É verdade que a Comissão foi constituída e negociada em um processo marcado por uma série de tensões e ambiguidades, típicas da transição controlada brasileira, mas, sem dúvidas, ela foi produto de uma conjuntura internacional favorável e de uma intensa mobilização de setores cada vez mais amplos da sociedade interessados em passar a história desse período a limpo. E essa mobilização transcende o trabalho e os limites da própria Comissão. É fato que nem todas as limitações existentes podem ser consideradas como de responsabilidade exclusiva da própria Comissão, isso deve ser frisado. Os maiores bloqueios ao avanço do trabalho de verdade e justiça em nosso país ainda estão postos no campo da lógica da governabilidade e das regras institucionais ainda pouco democráticas da política brasileira. Mas a CNV precisa contribuir para romper com esses limites e não para reproduzi-los.

Foto: Marcelo Camargo/ABr

Fonte: Brasil de Fato

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