sábado, 20 de fevereiro de 2010

Wevergton Brito Lima: a carta do ministro e a decadência do Globo

Na manhã do dia 12 de fevereiro, em plena sexta-feira carnavalesca, preparo-me para a penosa faina que é ler o jornal O Globo. As constantes manipulações, distorções e mentiras, somadas à arrogância do pensamento único que determina a linha editorial do jornal, foram transformando o hábito de ler O Globo quase que em uma tortura.

Por Wevergton Brito Lima*

Assim como eu, muitos leitores se questionam: “Por que continuo a ler este jornal?”. A resposta é óbvia: não se pode ignorar a força de O Globo que, assim como a Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e outros veículos da mídia impressa, interferem poderosamente na cena política brasileira, tornando difícil a decisão de simplesmente cancelar a assinatura, como é o meu desejo.

Portanto sigo em frente, disposto a encarar mais uma amostra do jornalismo de circo de Ali Kamel e seus colunistas amestrados (nem todos os colunistas de O Globo são amestrados, Veríssimo é a mais ilustre exceção, mas a grande maioria cumpre este triste papel de sabujo da linha editorial do patrão).
Até que a edição do dia 12 não foi das piores. Mas na página 4 um dos mais destacados C.As. (colunistas amestrados), a pretexto de atacar José Roberto Arruda arranja um jeito de incluir Lula na dança, ao “estranhar” a declaração do presidente, que considerou a prisão do governador um episódio triste da crônica política brasileira. Com base nesta polêmica opinião de Lula, o C.A. parte logo para a conclusão de que Lula defendeu “a impunidade dos políticos, como fez com os mensaleiros e com os aloprados do PT”.
Embora o pretenso assunto da coluna (a prisão de Arruda) não tivesse nada a ver com o suposto mensalão do PT, isso não é empecilho para um verdadeiro Colunista Amestrado. Vamos imaginar que Lula tivesse dito, sobre a prisão de Arruda, exatamente o contrário do que disse: “a prisão do governador de Brasília é um episódio feliz para todos nós”. O nosso brioso C.A. diria então que isto não é o papel de um estadista!
Que um estadista não pode comemorar, como se ainda fosse um sindicalista, a prisão de um governador do Distrito Federal! Nosso C.A. ficaria indignado perante este “oportunismo” e terminaria com a mesma acusação: Lula teria sido incoerente, já que defendeu “a impunidade dos mensaleiros e dos aloprados do PT”. Afinal o que importa para um bom C.A. é buscar cumprir a cada vez mais inglória tarefa de desgastar o presidente Lula.
Passo pela página 4 já irritado. Na página 6, um editorial “Prós e Contras” faz um balanço dos 30 anos de fundação do PT. Na coluna dos lucros (para usar uma expressão do jornal) O Globo incluiu a “Carta ao Povo Brasileiro”, que assumiu o “compromisso de manter as bases da economia de mercado, sem calotes e delírios”. Na coluna dos prejuízos o fato de ainda existir no PT pessoas que sonham com o “paraíso socialista”.
Essas pessoas, para O Globo, tem uma visão golpista e autoritária (espanta ver a desfaçatez com que o jornal que apoiou a Ditadura Militar fala em autoritarismo!). No fim, O Globo saúda o fato de “a cúpula do Partido rejeitar propostas esquerdizantes para o programa de sua candidata”.
Na coluna de cartas é que acontece a surpresa. Com o título “Coerência no Minc”, o Ministro da Cultura, Juca Ferreira, discorre sobre as propostas de mudanças na Lei Rouanet. Como é Ministro e o assunto vem dando ensejo a um intenso debate, talvez fosse o caso de O Globo transformar a carta do Juca em artigo. Mas não. Colocou o texto em penúltimo lugar na seção de cartas.
Quando se lê a missiva do ministro entende-se a razão de O Globo buscar esconder o debate. A carta é demolidora. Juca Ferreira alerta para o fato de que a lei Rouanet, nestes 19 anos de existência, revelou distorções e insuficiências. Diz que é preciso determinação para superar estas distorções e insuficiências “mesmo tendo que enfrentar os que se beneficiam do dinheiro público de forma privilegiada”.
O ministro elenca os dados que comprovam as distorções: “Em 18 anos da Lei Rouanet, só 5% foi dinheiro privado e apenas 3% dos proponentes – quase sempre os mesmos – tiveram acesso a mais da metade do dinheiro gerado pela lei. Apesar de ser uma lei federal, ela pretere 25 das 27 unidades da federação”.
O ministro segue demonstrando, sempre com dados, a incrível concentração que beneficia poucos, “quase sempre os mesmos”, e pouco antes do final vem uma valiosa lição de moral muito bem dada: “O que se espera de um jornal efetivamente comprometido com a sociedade brasileira é que, em nome da grandeza cultural brasileira, coloque em segundo plano seus interesses como captador de recursos da Lei Rouanet”.
A resposta de O Globo foi no melhor estilo Ali Kamel. Contra os números apresentados pelo ministro não se apresentou nenhum outro número ou contestação. Argumentou-se que O Globo não é o único a apontar o “vício dirigista”. Afirmou-se que as mudanças na lei farão diminuir os recursos arrecadados. E, pérola das pérolas, esclareceu: “Em tempo: a redação do Globo não se vale da Lei Rouanet”. Ora, mesmo uma criança é capaz de entender que o Ministro Juca Ferreira, em sua bem dada estocada, não insinuou que “a redação” de O Globo usufrui incentivos da citada Lei, mas sim que as Organizações Globo, através de seus inúmeros instrumentos, capta muito dinheiro utilizando a Lei Rouanet, fato, de resto, sabido por todos.
A resposta de O Globo conclui afirmando peremptoriamente que o único interesse do jornal neste debate é “evitar a manipulação de recursos públicos por culturocratas (sic) a serviço da fisiologia ideológica e do compadrio político”. Em suma: para contraditar os sólidos e serenos argumentos do Ministro, O Globo vale-se de chavões e distorções.
Em termos de respostas pífias, recordar é viver: Ali Kamel, homem forte do jornalismo das Organizações Globo, foi aquele que, em já memorável coluna, acuado pelas inúmeras denúncias de manipulação do noticiário durante a última campanha presidencial (inclusive de ex-subordinados seus), gastou quase metade da página 7 do jornal para dizer que o jornalismo de O Globo era sempre imparcial já que a produção da notícia era coletiva.
Ao ver um argumento tão pueril (afinal no quartel o trabalho é coletivo mas quem manda é o general, na fábrica o trabalho é coletivo mas quem manda é o proprietário, no jornal O Globo o trabalho é coletivo mas quem determina a linha editorial são os irmãos Marinho) partindo de um dos “cabeças” das Organizações Globo, entende-se a atual indigência intelectual que campeia no jornal e sua evidente decadência. É certo que O Globo continua forte e influente, mas também é visível que ele vem perdendo prestígio e leitores, o que me faz ficar cada vez mais em dúvida sobre continuar, com a minha assinatura, ajudando a financiar este triste exemplo de jornalismo.
Quanto a minha leitura da edição do dia 12, só aguentei até a página sete, quando me deparei com um dos novos C.A.s, Nelson Motta, o colunista de uma nota só, exemplo perfeito e acabado da “mediocridade arrogante”, sempre a vociferar contra “a esquerda”, o “ditador Hugo Chávez”, etc. Aí eu parei e fui curtir o maravilhoso carnaval do Rio. De indigência intelectual eu já estava cheio.

Leia abaixo a íntegra da carta do ministro e a resposta de O Globo.

Coerência no MinC (Cartas dos Leitores)

O Globo - RJ, Opinião, em 12/02/2010

O Ministério da Cultura vem promovendo nestes últimos sete anos um importante debate público sobre a ampliação de recursos e novos mecanismos que garantam o incentivo e o financiamento à altura da grandeza e da diversidade da cultura brasileira. Considerando que 80% do que o MinC atualmente repassa para apoiar a produção cultural vão através do mecanismo da renúncia fiscal, uma parte importante deste debate é sobre a Lei Rouanet, suas distorções e insuficiências acumuladas nestes 19 anos de existência.


Os números da concentração são tão graves que seria uma covardia da nossa parte e um desrespeito com o povo brasileiro e com os que criam e produzem cultura nos quatro cantos do Brasil se nós não tivéssemos sido firmes e determinados em apontar a necessidade de aprimoramento, mesmo tendo que enfrentar os que se beneficiam do dinheiro público de forma privilegiada… Nesse cenário de maturidade democrática, de fortalecimento da crítica e do diálogo, espanta a forma como O Globo, em sua coluna Opinião (7/2/2010), tratou o tema. O editorial chama de “êxito” o resultado de uma lei que estimula a distribuição de dinheiro público sem critérios e desestimula o investimento privado. Em 18 anos de Lei Rouanet, só 5% foram dinheiro privado e apenas 3% dos proponentes - quase sempre os mesmos - tiveram acesso a mais da metade do dinheiro gerado pela lei. Apesar de ser uma lei federal, ela pretere 25 das 27 unidades da federação. Em torno de 80% desse dinheiro ficam em dois estados e, dos cerca de seis mil artistas que recebem o crédito do MinC e que buscam apoio de algum departamento de marketing, só 20% conseguem.
Quase sempre os mesmos. Logo, o argumento de que não se deve mexer na lei porque ela é boa para o país é falacioso e a manutenção da atual só é positivo para as poucas organizações que compõem esses 3% dos que conhecem o caminho das pedras que leva ao “sim” dos departamentos de marketing. Podemos ter uma lei muito melhor, ao acesso de todos os artistas produtores e organizações culturais de todo o país, como parte do esforço do atual governo de dotar a cultura brasileira de reconhecimento, peso político, recursos e políticas estruturadas. Onde o jornal vê intervencionismo estatal, nós praticamos o fortalecimento do protagonismo da sociedade civil e a ampliação do acesso a um recurso que antes era destinado a poucos.
Em vez da velha mistificação que nos lembra os anos de autoritarismo, sugiro que apontem no texto do projeto de lei onde esse dirigismo se manifesta. É muito mais produtivo participar do debate do que tentar inviabilizá-lo. A iniciativa privada foi, é, e continuará sendo nossa parceira na promoção da cultura no país. Há empresários que atuam no setor de modo louvável.
O que se espera de uma jornal efetivamente comprometido com a sociedade brasileira é que, em nome da grandeza cultural brasileira, coloque em segundo plano seus interesses como captador de recursos da Lei Rouanet. O Globo poderá prestar um grande serviço à cultura brasileira, na medida em que, como órgão de comunicação respeitável e prestigiado, participar do debate com a transparência e o respeito que o país merece.
Juca Ferreira
Ministro de Estado da Cultura (por e-mail, 11/2), Brasília, DF


NOTA DA REDAÇÃO: No debate de quase um ano sobre as propostas do ministros de uma nova Lei Rouanet, O Globo não tem sido o único a apontar o vício dirigista embutido no projeto do MinC. O mesmo vício que contaminara a ideia da Ancinav, também do ministério, engavetada pelo governo diante das críticas à intenção da Pasta, à época sob o comando de Gilberto Gil, de intervir na produção audiovisual do país. É verdade que os recursos aplicados via Lei Rouanet são públicos, mas eles advêm de impostos cobrados ao contribuinte. Se a nova lei retirar dele o poder de escolha do que apoiar, e transferi-lo à burocracia estatal, que se arroga representante da “sociedade civil”, quem gera renda e recolhe imposto preferirá pagá-lo efetivamente, sem se valer do incentivo. E assim a cultura perderá apoio financeiro. Em tempo: a redação do Globo não se vale da Lei Rouanet; seu interesse, no caso, é evitar a manipulação de recursos públicos por culturocratas a serviço da fisiologia ideológica e do compadrio político.


* Wevergton Brito Lima é jornalista e secretário de Comunicação do PCdoB-RJ
http://www.vermelho.org.br/

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