quinta-feira, 21 de abril de 2011

Privilégio irresponsável


As falas imbecis e preconceituosas de Jair Bolsonaro repercutiram mundo afora e suscitaram debates sobre a liberdade de expressão. Alguns foram irônicos e chamaram aqueles que pedem a cassação do deputado de “fascistas do bem”. Outros, com muito mais acuidade, tentaram entender o limite da liberdade de expressão e a democracia. Ao meu ver, o debate está deslocado: usam o direito à liberdade de expressão o confundindo com a imunidade parlamentar.
Em uma outra coluna chamada “Devemos tolerar os intolerantes?”, publicada aqui no Yahoo!, já havia escrito sobre o paradoxo que enfrentamos ao tratar desta questão. Qual é, e quais deveriam ser os limites da liberdade de expressão? Algumas veiculações de ideias devem ser proibidas a priori? Quais? Por quem?
Muitos, inocentemente ou de caso pensadíssimo, confundiram as questões e misturaram a liberdade de expressão com o instituto confuso e anacrônico da imunidade parlamentar. Sua criação foi num contexto específico de lutas intensas entre o Rei e o Parlamento. Este, com medo de retaliação, procurou se precaver e se tornar imune à processos ou perseguições por crime de opinião. Pensavam em poder defender suas ideias políticas livremente, e poder criticar as atitudes dos reis. Nunca esteve realmente em pauta o direito de ofender e de ser preconceituoso ou mesmo de atentar contra um outro princípio constitucional: a defesa da dignidade humana.
Aliás, aqui no Brasil temos um marco importantíssimo deste instituto que, de uma maneira trágica, mudou a nossa história. Em setembro de 1968 , o deputado Márcio Moreira Alves fez um discurso protestando contra a Ditadura Militar, contra a máquina de tortura oficial e pedindo um boicote contra a Parada de Sete de Setembro. Os Militares pediram a autorização ao Congresso para processá-lo, o que foi negado. Irritados com o fato, e com o “excesso de democracia”, os nosso ditadores decretaram o AI-5. Começava o período mais negro da nossa história.
Márcio Moreira Alves era o “elo fraco” da corrente. Ele falava contra um poder central extremamente poderoso (no caso específico, ditatorial). Ele precisava da imunidade para evitar perseguições. Caso clássico do uso pensado por aqueles que instituíram esta salvaguarda.
No caso recente, envolvendo Bolsonaro, há uma completa inversão da lógica: O alvo do deputado carioca é justamente as minorias, já alijadas de direitos mínimos. Caso clássico de um “poderoso” se utilizando das leis para amealhar mais poder, imunidade contra àqueles que são os mais “desempoderados”.
Isso porque os deputados alargaram até o infinito a ideia da imunidade parlamentar. Chegou-se às raias do burlesco quando o mesmo Bolsonaro afirmou que tem imunidade até mesmo pra roubar. Se, como querem alguns, a questão é meramente jurídica, num argumento fático que afirma que deputados podem falar o que quiser, argumento com outro princípio constitucional. Num conflito entre princípios, qual deve prevalecer? É isto que (também) está em jogo. Qual é o princípio superior: a imunidade parlamentar ou a defesa da dignidade humana?!?
No texto já mencionado, apontei um dilema quase que insolúvel das democracias modernas: O quanto estamos dispostos, em nome da democracia e da liberdade, a tolerar aqueles que utilizam da própria democracia para destruí-la?
Aqui no Brasil achamos um meio-termo, esquizofrênico. Uma pessoa comum não tem o direito de falar o que quiser. A liberdade de expressão não é plena para o cidadão brasileiro: ele não pode, por lei, manifestar suas opiniões preconceituosas, racistas, de ódio (se isso é bom ou ruim, juro que não sei. Tenho muito medo do “quem decide”). Mas um deputado pode falar o que quiser e não ser responsabilizado por nada. Imunidade é irresponsabilidade.
Por isso a confusão no debate do caso específico. A imunidade parlamentar torna-se o meio pelo qual estas pessoas, mudas, ganham voz. Uma espécie de caixa de ressonância, ou uma “liberdade de expressão por procuração”. Por isso tanta manifestação de apreço e apoio ao Bolsonaro. Os racistas, as viúvas do pau-de-arara, os homofóbicos, alijados da fala, encontraram seu procurador!
Ora, se não é o caso de salvaguardar os deputados contra a tirania de um poder central (tirania esta paradoxalmente defendida pelo deputado do PP. Ele apoiou os que cassaram Márcio Moreira Alves, lembram?), então estamos diante da discussão sobre os limites da liberdade de expressão. E estes limites, se é que devem ser estabelecidos, devem ser para todos. Independente de classe, credo ou… profissão.
O que cabe no momento é, urgentemente, discutir a questão da imunidade parlamentar, seus vícios e anacronismos. Mas isso implica mexer em privilégios. Quem está disposto a abrir mão deles ou mesmo expandi-los a toda a população? Dito de outra maneira: por que um arrogante autoritário, adepto de que se cale os seus opositores, tem direito de sê-lo e um cidadão comum não?

Por Walter Hupsel . 21.04.11 - 14h08
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