segunda-feira, 2 de setembro de 2013

ELITISMO SEM JUSTIFICATIVA: Médicos formados em Cuba lideram aprovação no Revalida


Médicos formados em Cuba foram os mais aprovados no Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos (Revalida) em 2011 e 2012. Dos 65 que conseguiram revalidar o diploma em 2011, 13 estudaram na Escola Latino-Americana de Cuba (Elam), assim como 15 dos 77 aprovados em 2012. Os dados são do Ministério da Educação (MEC) e foram obtidos via Lei de Acesso à Informação.


A escola oferece curso de Medicina para estudantes de 113 países, incluindo brasileiros saídos de movimentos populares. A instituição, porém, recebe críticas de especialistas e conselhos de Medicina brasileiros, pois seus profissionais têm de fazer um complemento nos estudos para atuar no sistema de saúde cubano.

Para o presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp), Cid Célio Jayme Carvalhaes, os médicos aprovados no Revalida têm o conhecimento necessário para exercer a profissão no Brasil, apesar das críticas à escola. “Sabemos que, por determinação do governo cubano, os alunos da Elam não podem atuar em Cuba sem o complemento (residência). Mas, se foram aprovados no Revalida, têm o mínimo exigido para atuar no Brasil. Eles passaram, tiveram mérito”, disse.

Quem estudou na Elam e teve seu título aprovado no Brasil diz que não há diferença na prática médica dos dois países. “Mas a gente vê que os formados em Cuba têm um enfoque mais humanitário. Na faculdade, por exemplo, tive uma disciplina específica de Medicina Familiar e Comunitária e atendi os pacientes onde eles precisavam”, afirma a médica paulistana Denise Assumpção do Nascimento, de 32 anos.

Ela se formou na Elam em 2003, fez especialização em Medicina Comunitária na Venezuela e teve seu título revalidado no Brasil em 2011. Hoje, cursa Medicina do Trabalho no Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo (USP).

Nessas duas edições do exame, os médicos formados na Bolívia foram os que mais se inscreveram. Em 2011, dos 677 inscritos, 304 haviam se formado naquele país. Em 2012, eles foram 411 dos 884. Porém, o porcentual de aprovação foi um dos menores, de 4,61% e 3,65%, respectivamente.


Fonte: Estadão


Grito dos Excluídos 2013 tem juventude como tema este ano

O 19º Grito dos Excluídos terá como tema este ano a exclusão dos jovens. Com o lema Juventude que Ousa Lutar Constrói Projeto Popular, os movimentos sociais e as pastorais promoverão vários atos em todo o País no dia 7 de setembro, quando se comemora o Dia da Independência, para chamar a atenção para os problemas que enfrentam os jovens brasileiros, principalmente os que vivem nas periferias.



Cartaz do Grito dos Excluídos 2013/divulgação

"A juventude, ao mesmo tempo em que é sinal de esperança e potencial de criatividade, é a mais excluída da sociedade, seja por conta do trabalho ou da violência", disse Marcelo Naves, membro do Instituto Paulista de Juventude.

Segundo Naves, nos últimos anos o Brasil tem avançado no mundo do trabalho, mas não o suficiente para incluir os jovens. "Dos desempregados (do País), metade são jovens. E, dos que estão empregados, há uma quantidade enorme em condições precárias, principalmente no mercado informal", disse Naves.

Os jovens, de acordo com ele, também estão excluídos da educação, principalmente nas universidades públicas e federais, apesar do governo ter criado programas de inclusão, tal como o Programa Universidade para Todos (Prouni). "E, por último, há ainda a questão da violência e do extermínio. Estamos, de fato, assistindo ao genocídio da juventude negra. A gente registra cerca de 50 mil homicídios por ano e, desse total, em mais de 40% das vítimas são jovens", disse ele.

São Paulo
Na capital paulista, o ato terá início às 8h com uma missa que será celebrada na Catedral da Sé, na região central. Depois, haverá um ato político a partir das 9h, na frente da catedral, com a participação de sindicatos, movimentos sociais, pastorais sociais e partidos políticos.

Em seguida, os manifestantes sairão em caminhada da Praça da Sé até o Parque da Independência, no Ipiranga, local onde D. Pedro I declarou o Brasil independente de Portugal, em 1822. "Lá, em frente ao Monumento (da Independência), faremos o contraponto do grito de independência com o grito dos excluídos."

No mesmo dia, haverá também um ato na cidade de Aparecida, interior paulista. "O grito começa a partir das 6h, com a romaria dos trabalhadores", disse Liciane Andrioli, militante do Movimento dos Ameaçados por Barragens (Moab).

Já no dia 5 de setembro haverá o pré-grito, com início às 8h, na avenida Paulista. "O pré-grito tem um caráter de preparação para o dia 7 de setembro. Em São Paulo, estamos organizando um pré-grito com concentração das ações na avenida Paulista e um dos temas principais é a denúncia do modelo energético implantado em nosso país. Uma das pautas é o direito dos atingidos por barragens", disse Liciane. Segundo ela, há hoje no País mais de 2,2 mil barragens, "que expulsaram mais de um milhão de pessoas". "E, desse total, mais de 70% não tiveram o reconhecimento de seus direitos", disse Liciane.

O Grito dos Excluídos foi criado em 1994, mas o primeiro evento só ocorreu em setembro de 1995. Ele é organizado pela Pastoral Social da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e tem apoio do Movimento dos Ameaçados por Barragens (Moab) e pelo Movimento Nacional dos Moradores de Rua, entre outros. Mais informações e o cartaz com o tema do Grito deste ano podem ser encontrados emwww.gritodosexcluidos.org.

Fonte: Portal Terra



SUJEIRA DA DITADURA: Documentos revelam detalhes do apoio brasileiro ao golpe no Chile


Documentos comprovam que o governo militar brasileiro apoiava o golpe que derrubou o presidente chileno Salvador Allende do poder e colocou o general Augusto Pinochet. A Ditadura militar, sob Médici, foi aliada antes, durante e após ação, que completa 40 anos neste mês. O jornal Estado de S.Paulo publica uma reportagem especial sobre o assunto. Leia abaixo:


 
Salvador Allende e Fidel Castro (Foto: Reuters)
O expediente no Itamaraty já havia terminado quando, às 20h30 de 13 de setembro de 1973, diplomatas chilenos foram recebidos na chancelaria esvaziada, em Brasília. O presidente Emílio Garrastazu Médici estava em São Paulo, de onde telefonara dando ordens expressas para que o Brasil se tornasse o primeiro país a reconhecer a junta militar que derrubara o governo de Salvador Allende. Um avião com "20 toneladas de medicamentos" estava a caminho de Santiago.

"É certo dizer que o novo governo do Chile encontrará no Brasil um poderoso aliado", escreveu, emocionado, no primeiro telegrama à junta militar, o encarregado de negócios chileno em Brasília, Rolando Stein - o embaixador de Allende no País, o jurista Raúl Rettig, que décadas depois chefiaria a comissão da verdade chilena, havia renunciado naquela manhã. Stein acertou na mosca.

Com base em arquivos brasileiros, já se sabia que o governo Médici deu amplo apoio aos conspiradores chilenos antes, durante e depois do golpe que este mês completa 40 anos. Empresários brasileiros enviaram dinheiro a grupos de direita no Chile, o embaixador em Santiago, Antonio Cândido da Camara Canto, atuou como pôde para minar o governo Allende (mais informações nesta página) e, dias após a queda dos socialistas, agentes brasileiros foram enviados ao Estádio Nacional e a outros centros de repressão para prestar "consultoria" a colegas chilenos.

Estado, porém, teve acesso a centenas de telegramas diplomáticos secretos do Chile recentemente liberados - e inéditos no Brasil - que revelam novas informações sobre o grau e as formas de participação do governo Médici na derrubada do governo da Unidade Popular (UP). Ao longo desta semana, o jornal publicará reportagens exclusivas sobre como o Brasil ajudou a empurrar o Chile para o período mais sombrio de sua história.

Uma das revelações mais impressionantes dos documentos chilenos é que, logo após chegar ao poder, o governo Allende recebeu informações precisas sobre as atividades da ditadura brasileira contra o Chile - incluindo planos para derrubar à força a UP. Segundo um telegrama "estritamente confidencial", um jornalista chileno vinculado ao ex-presidente Jorge Alessandri, de direita, alertou o embaixador de Allende em Brasília que havia sido procurado "por um general brasileiro amigo". O militar lhe propôs ajuda para "organizar no Chile um movimento de resistência armada (...), estruturado em forma de guerrilha, (...) contra o ‘perigo vermelho’."

No mês seguinte, a embaixada recebeu novas e mais detalhadas informações sobre o plano de insurgência no Chile. Desta vez, porém, o alerta partiu de um informante altamente improvável: um oficial brasileiro, "com ideias políticas de esquerda", vinculado ao serviço de inteligência do Exército.

Por meio de um intermediário, o militar fez chegar a um secretário da embaixada chilena a informação de que, dentro do Ministério do Exército, no Rio de Janeiro, funcionava uma sala de operações, com maquetes da Cordilheira dos Andes e mapas, para estudar e planejar uma guerrilha anticomunista no Chile. Brasileiros participariam apenas como instrutores e os combates seriam travados por civis chilenos. Mais: como parte dos preparativos, o Exército do Brasil teria enviado "diversos agentes secretos, que entraram no Chile como turistas".

Um cidadão chileno que viva em São Paulo "e merece toda confiança" também afirmou à missão diplomática que um "corpo do Exército nessa cidade estaria procurando voluntários chilenos para empreender uma aventura bélica" no Chile. A articulação estaria sendo feita com ajuda de integrantes da Fiducia - equivalente chilena à Tradição Família e Propriedade (TFP) - que haviam se mudado para São Paulo.

 
 
Militantes presos no Chile

Embaixador suíço

O militar brasileiro, cuja identidade não é revelada nos documentos, passou outro recado importante ao governo Allende. Entre os 70 "subversivos" brasileiros que foram ao Chile no ano anterior, trocados pelo embaixador suíço, Giovanni Bucher, havia dois espiões do Exército brasileiro. A governo Médici havia deliberadamente atrasado a negociação para libertar os presos políticos com o objetivo de colocar os infiltrados em território chileno. Lá, eles deveriam coletar informações e se comportar como "agentes provocadores".

À época, cerca de 5 mil exilados brasileiros viviam no Chile, onde conduziam intensas atividades de denúncia à ditadura. Os documentos chilenos mostram que o embaixador do Brasil em Santiago, Antônio Cândido da Câmara Canto, várias vezes apresentou protestos formais ao governo em razão de artigos e declarações de opositores brasileiros à imprensa local. Vários brasileiros que estiveram no Chile, consultados pelo Estado, disseram que muito provavelmente eles eram monitorados por meio de espiões.

O embaixador de Allende no Brasil chama atenção para o caso de duas senhoras brasileiras, parentes de exilados, que foram presas pela Aeronáutica no Aeroporto do Galeão, no Rio, ao desembarcarem do Chile, no dia 19 de janeiro daquele ano. Elas traziam cartas de brasileiros exilados, incluindo uma mensagem de Almino Afonso, ex-ministro do governo João Goulart, ao deputado Rubens Paiva. O embaixador chileno em Brasília acreditava que elas haviam sido delatas por informantes da ditadura entre os brasileiros em Santiago. No dia seguinte ao caso no Galeão, Rubens Paiva foi preso em sua casa por agentes que se diziam da Aeronáutica.

Fonte: O Estado de S.Paulo

Fernando Brito: A Globo, afinal, cospe no golpe em que comeu


O Globo divulgou no sábado (31) à tarde um comunicado, em que reconhece que seu apoio ao Golpe de 64 foi um erro.

Por Fernando Brito, Tijolaço



Imagem: Blog Tijolaço

“Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. De fato, trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura.
Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro.”

Não foi um erro, não.

Foi um crime, e deste crime as Organizações Globo beneficiaram-se lautamente, ao ponto de fazer com que a fortuna dos três herdeiros do capo Roberto Marinho constitua-se na maior do Brasil e uma das maiores do mundo.

Nenhum militar dos que tenham feito e servido à ditadura tem sequer um milésimo do que o regime deu aos Marinho.

Portanto, comecemos assim, chamando as coisas pelo que elas são. Não erro, não “equívoco”.

Crime. Contra a democracia, contra o voto popular, contra a vida de milhares de cidadãos mortos pela ditadura que a Globo ajudou a fazer e a sustentar, e ganhando muito, muito, muitíssimo dinheiro com isso.

Esse dinheiro, certamente, a Globo não considera um “erro”, pois não?

Pois seu império nasceu ali, junto com a ditadura, com um negócio ilegal que o regime ditatorial tolerou e acobertou: a associação com o grupo Time e as fartas verbas que os EUA destinavam a evitar o “perigo comunista”, colocando a nascente e poderosa mídia, a televisão, nas mãos amigas de “gente confiável”.

A Globo usou esse poder. Em condições ilegais perante o Código Brasileiro de Telecomunicações que proibia a concentração de emissoras em todo o país nas mãos de um só grupo empresarial, comprou televisões em todo o Brasil, dissimulando-as na condição de “afiliadas”, quando são verdadeiras sucursais do grupo, presas inteiramente a seu comando e estratégia de negócios.

Para isso, lambeu as botas da ditadura e serviu-lhe de instrumento despudorado de propaganda.

O que seu editorial diz, ao procurar desvincular-se do horror da tortura e da morte, ao falar de como Roberto Marinho protegia “seus comunistas” é de uma indignidade sem par. Ou vamos entender que aquele que não era seu empregado poderia bem morrer sob seu silêncio, ou vamos entender que aqueles profissionais, que trabalhavam e contribuíam para o sucesso da empresa, merecem ser exibidos como “gatinhos de estimação”, gordos e protegidos, e “livres da carrocinha” que laçava outros pelas ruas deste país.

A Globo nunca teve vergonha de, nas palavras de seu Füher, “usar o poder” de que dispunha em benefìcio dos políticos e governantes de sua predileção, durante e depois do período militar.

Patrocinou a Proconsult contra Brizola. Manipulou o debate de 89 em favor de Collor e contra Lula. Apoiou desavergonhadamente a eleição de Fernando Henrique Cardoso, encobrindo-lhe a escapada conjugal desastrada, somando-se à manipulação eleitoral da nova moeda, promovendo a dilapidação das empresas pertencentes ao povo brasileiro, apoiando e dando legitimidade à vergonhosa corrupção que envolveu a aprovação da proposta de reeleição em causa própria.

Quem quiser provas disso, leia O Príncipe da Privataria, que chegou neste final de semana às livrarias.

A autocrítica, que nos homens de bem é uma virtude e um momento a ser louvado, na Globo é apenas o que ela é: interesse em dinheiro transformado em sabujice.

Percebeu que o projeto Lula-Dilma não pode ser derrotado, malgrado todas as suas tentativas, e lança estes “mea culpa” fajutos para se habilitar – ainda mais, ainda mais! – aos dinheiros públicos do Governo, vício incorrigível de seu ventre dilatado e enxundioso.

Tudo na Globo é falso, como tive a honra de escrever há quase 20 anos para Leonel Brizola em seu famoso “direito de resposta” à Globo.

Nem o coro que diz que “voltou às ruas” – ele nunca saiu! – não é esse: é “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”.

Porque o povo, que não é bobo, pode perdoar aqueles que erraram e mudaram sinceramente de atitude ao perceber seu erro.

A Globo, não.

Comeu cada côdea do rico pão que o regime lhe deu e só mudou de lado quando as ruas, inundadas pelas “Diretas-Já” tornaram o regime uma sombra em ruínas.

Seus jovens executivos, que planejaram este ato de contrição fajuto, com todos as suas melosidades e senões, são apenas pequenos maquiadores deste monstro que acanalhou a vida brasileira e que vai ter um fim mais rápido e ruidoso do que muitos imaginam.

Porque o povo não é bobo, sabe que a Globo é um cancro que precisa ser extirpado da vida brasileira.

E é por isso que grita o que a Globo não pode confessar:

Abaixo a Rede Globo!

PS. reproduzo, enojado, o texto editorial de O Globo.

Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro
A consciência não é de hoje, vem de discussões internas de anos, em que as Organizações Globo concluíram que, à luz da História, o apoio se constituiu um equívoco

RIO – Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. De fato, trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura.

Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro.

Há alguns meses, quando o Memória estava sendo estruturado, decidiu-se que ele seria uma excelente oportunidade para tornar pública essa avaliação interna. E um texto com o reconhecimento desse erro foi escrito para ser publicado quando o site ficasse pronto.

Não lamentamos que essa publicação não tenha vindo antes da onda de manifestações, como teria sido possível. Porque as ruas nos deram ainda mais certeza de que a avaliação que se fazia internamente era correta e que o reconhecimento do erro, necessário.

Governos e instituições têm, de alguma forma, que responder ao clamor das ruas.

De nossa parte, é o que fazemos agora, reafirmando nosso incondicional e perene apego aos valores democráticos, ao reproduzir nesta página a íntegra do texto sobre o tema que está no Memória, a partir de hoje no ar:

1964

“Diante de qualquer reportagem ou editorial que lhes desagrade, é frequente que aqueles que se sintam contrariados lembrem que O GLOBO apoiou editorialmente o golpe militar de 1964.

A lembrança é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como refutá-la. É História. O GLOBO, de fato, à época, concordou com a intervenção dos militares, ao lado de outros grandes jornais, como “O Estado de S.Paulo”, “Folha de S. Paulo”, “Jornal do Brasil” e o “Correio da Manhã”, para citar apenas alguns. Fez o mesmo parcela importante da população, um apoio expresso em manifestações e passeatas organizadas em Rio, São Paulo e outras capitais.

Naqueles instantes, justificavam a intervenção dos militares pelo temor de um outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart, com amplo apoio de sindicatos — Jango era criticado por tentar instalar uma “república sindical” — e de alguns segmentos das Forças Armadas.

Na noite de 31 de março de 1964, por sinal, O GLOBO foi invadido por fuzileiros navais comandados pelo Almirante Cândido Aragão, do “dispositivo militar” de Jango, como se dizia na época. O jornal não pôde circular em 1º de abril. Sairia no dia seguinte, 2, quinta-feira, com o editorial impedido de ser impresso pelo almirante, “A decisão da Pátria”. Na primeira página, um novo editorial: “Ressurge a Democracia”.

A divisão ideológica do mundo na Guerra Fria, entre Leste e Oeste, comunistas e capitalistas, se reproduzia, em maior ou menor medida, em cada país. No Brasil, ela era aguçada e aprofundada pela radicalização de João Goulart, iniciada tão logo conseguiu, em janeiro de 1963, por meio de plebiscito, revogar o parlamentarismo, a saída negociada para que ele, vice, pudesse assumir na renúncia do presidente Jânio Quadros. Obteve, então, os poderes plenos do presidencialismo. Transferir parcela substancial do poder do Executivo ao Congresso havia sido condição exigida pelos militares para a posse de Jango, um dos herdeiros do trabalhismo varguista. Naquele tempo, votava-se no vice-presidente separadamente. Daí o resultado de uma combinação ideológica contraditória e fonte permanente de tensões: o presidente da UDN e o vice do PTB. A renúncia de Jânio acendeu o rastilho da crise institucional.

A situação política da época se radicalizou, principalmente quando Jango e os militares mais próximos a ele ameaçavam atropelar Congresso e Justiça para fazer reformas de “base” “na lei ou na marra”. Os quartéis ficaram intoxicados com a luta política, à esquerda e à direita. Veio, então, o movimento dos sargentos, liderado por marinheiros — Cabo Ancelmo à frente —, a hierarquia militar começou a ser quebrada e o oficialato reagiu.

Naquele contexto, o golpe, chamado de “Revolução”, termo adotado pelo GLOBO durante muito tempo, era visto pelo jornal como a única alternativa para manter no Brasil uma democracia. Os militares prometiam uma intervenção passageira, cirúrgica. Na justificativa das Forças Armadas para a sua intervenção, ultrapassado o perigo de um golpe à esquerda, o poder voltaria aos civis. Tanto que, como prometido, foram mantidas, num primeiro momento, as eleições presidenciais de 1966.

O desenrolar da “revolução” é conhecido. Não houve as eleições. Os militares ficaram no poder 21 anos, até saírem em 1985, com a posse de José Sarney, vice do presidente Tancredo Neves, eleito ainda pelo voto indireto, falecido antes de receber a faixa.

No ano em que o movimento dos militares completou duas décadas, em 1984, Roberto Marinho publicou editorial assinado na primeira página. Trata-se de um documento revelador. Nele, ressaltava a atitude de Geisel, em 13 de outubro de 1978, que extinguiu todos os atos institucionais, o principal deles o AI5, restabeleceu o habeas corpus e a independência da magistratura e revogou o Decreto-Lei 477, base das intervenções do regime no meio universitário.

Destacava também os avanços econômicos obtidos naqueles vinte anos, mas, ao justificar sua adesão aos militares em 1964, deixava clara a sua crença de que a intervenção fora imprescindível para a manutenção da democracia e, depois, para conter a irrupção da guerrilha urbana. E, ainda, revelava que a relação de apoio editorial ao regime, embora duradoura, não fora todo o tempo tranquila. Nas palavras dele: “Temos permanecido fiéis aos seus objetivos [da revolução], embora conflitando em várias oportunidades com aqueles que pretenderam assumir a autoria do processo revolucionário, esquecendo-se de que os acontecimentos se iniciaram, como reconheceu o marechal Costa e Silva, ‘por exigência inelutável do povo brasileiro’. Sem povo, não haveria revolução, mas apenas um ‘pronunciamento’ ou ‘golpe’, com o qual não estaríamos solidários.”

Não eram palavras vazias. Em todas as encruzilhadas institucionais por que passou o país no período em que esteve à frente do jornal, Roberto Marinho sempre esteve ao lado da legalidade. Cobrou de Getúlio uma constituinte que institucionalizasse a Revolução de 30, foi contra o Estado Novo, apoiou com vigor a Constituição de 1946 e defendeu a posse de Juscelino Kubistchek em 1955, quando esta fora questionada por setores civis e militares.

Durante a ditadura de 1964, sempre se posicionou com firmeza contra a perseguição a jornalistas de esquerda: como é notório, fez questão de abrigar muitos deles na redação do GLOBO. São muitos e conhecidos os depoimentos que dão conta de que ele fazia questão de acompanhar funcionários de O GLOBO chamados a depor: acompanhava-os pessoalmente para evitar que desaparecessem. Instado algumas vezes a dar a lista dos “comunistas” que trabalhavam no jornal, sempre se negou, de maneira desafiadora.

Ficou famosa a sua frase ao general Juracy Magalhães, ministro da Justiça do presidente Castello Branco: “Cuide de seus comunistas, que eu cuido dos meus”. Nos vinte anos durante os quais a ditadura perdurou, O GLOBO, nos períodos agudos de crise, mesmo sem retirar o apoio aos militares, sempre cobrou deles o restabelecimento, no menor prazo possível, da normalidade democrática.

Contextos históricos são necessários na análise do posicionamento de pessoas e instituições, mais ainda em rupturas institucionais. A História não é apenas uma descrição de fatos, que se sucedem uns aos outros. Ela é o mais poderoso instrumento de que o homem dispõe para seguir com segurança rumo ao futuro: aprende-se com os erros cometidos e se enriquece ao reconhecê-los.

Os homens e as instituições que viveram 1964 são, há muito, História, e devem ser entendidos nessa perspectiva. O GLOBO não tem dúvidas de que o apoio a 1964 pareceu aos que dirigiam o jornal e viveram aquele momento a atitude certa, visando ao bem do país.

À luz da História, contudo, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original. A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma.”

(Título original "A Globo, afinal, cospe no golpe em que comeu e engordou" alterado por redação Vermelho)


O que fazer com os EUA? Luciana Santos: Espionagem é uma afronta à soberania nacional


Sob a cortina do combate ao terrorismo, os Estados Unidos continuam afrontando a soberania dos países e promovendo, impunemente, ataques às liberdades individuais. Várias ações são autorizadas pela Casa Branca diariamente nos quatro cantos do mundo em nome dos cidadãos norte-americanos, como é o caso da guerra infinita no Afeganistão, no Iraque e em vários outros países.

Por Luciana Santos * 


A natureza de sua política imperialista também fica clara no bloqueio econômico a Cuba e através do papel da CIA nos golpes militares na América Latina e, mais recentemente, nas tentativas de interferência nos processos eleitorais na Bolívia e na Venezuela.

A verdade é que o caráter da construção do atual gigantesco aparato de espionagem pelo governo estadunidense não está relacionado ao ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. Está diretamente ligado à política externa do país com a maior máquina de guerra jamais vista na história da humanidade: os Estados Unidos da América.

A mais recente vítima dessa política imperialista foi o brasileiro David Miranda, namorado do jornalista Glenn Greenwald, responsável por publicar uma série de denúncias sobre a espionagem norte-americana, que ficou detido por aproximadamente nove horas no último dia 18 no aeroporto de Heathrow, em Londres, enquanto tentava embarcar de volta para o Rio de Janeiro, sob a injustificável lei de antiterrorismo.

Em visita ao Brasil, o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, ao invés de se desculpar oficialmente pelas ações perpetradas pela rede de espionagem estadunidense durante vários anos em nosso país, justificou as ações lesivas à segurança nacional brasileira com o argumento de que seriam para proteger os interesses dos Estados Unidos e do Brasil. E o pior, afirmou que continuarão a fazê-las. Quanto cinismo!

O Brasil não é o mesmo das décadas de 1960 ou 1970. Não temos mais a mesma atitude subserviente adotada pelos governantes de então, não temos mais a postura de subordinação aos interesses econômicos, geopolíticos. A postura do governo norte-americano externada durante a visita do secretário Kerry é um verdadeiro acinte!

Vivenciamos, sob a égide do governo Fernando Henrique Cardoso, uma interferência explícita da estrutura do mercado financeiro. O Fundo Monetário Internacional (FMI) interferia nas decisões macroeconômicas e, como consequência, nos investimentos do setor produtivo e nas políticas públicas. Com o governo Lula, esse tipo de submissão foi rompido. Passamos de devedores a credores do FMI e desenvolvemos uma política externa cujo conteúdo era garantir a interlocução dos interesses brasileiros em várias partes do mundo.

Uma frase dita por Chico Buarque se encaixa bem nessa situação: “O Brasil é um país que é ouvido em toda parte porque fala de igual para igual com todos. Não fala fino com Washington, nem fala grosso com a Bolívia e o Paraguai”.

Portanto, aqui, trata-se de defender uma das questões mais caras para qualquer nação: sua soberania e sua autonomia.

A diplomacia brasileira precisa se posicionar firmemente contra essas ações. O Parlamento também deveria se pronunciar oficialmente repudiando esta prática. Por fim, no esteio desse debate, deveríamos discutir um assunto estratégico, que é a política de investimentos na área de ciência, tecnologia e inovação, garantindo e evidenciando o potencial brasileiro para produzir softwares e equipamentos e desenvolver ferramentas de monitoramento e defesa com tecnologia nacional, eficiente e segura.

O Brasil – além de reagir diante dos órgãos multilaterais como as Nações Unidas – deverá investir pesadamente em Ciência e Tecnologia para se colocar à altura de uma defesa soberana do país. O próprio ministro da Defesa, Celso Amorim, em reunião na Comissão de Relações Exteriores do Senado, reconheceu as vulnerabilidades do país. Segundo Amorim, o Brasil é vulnerável porque todas as comunicações, “incluindo as de Defesa”, passam por um satélite que não é brasileiro. O governo brasileiro prepara o lançamento de um satélite geoestacionário e essa medida é essencial para que nosso país tenha uma faixa própria de comunicação, o que inviabilizaria o controle externo de nossas informações de segurança.

A espionagem levada a cabo no Brasil e em diversos outros países do mundo por parte da rede estadunidense – desvendada a partir de denúncias do ex-agente norte-americano Edward Snowden – é um claro desrespeito às Convenções de Viena, que preveem sigilo em correspondência diplomática. Nenhuma ingerência deve ser tolerada. Quem manda no Brasil são os brasileiros!

*É deputada federal pelo PCdoB de Pernambuco e vice-presidente do partido. Engenheira eletricista pela UFPE, foi prefeita de Olinda por dois mandatos e preside a Frente Parlamentar em Defesa da Cultura do Congresso Nacional

Espionagem indica "grau máximo de desrespeito à soberania", diz ministra
A ministra-chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário, se manifestou pelo Twitter na noite deste domingo (1º) sobre a denúncia de espionagem à presidenta Dilma Rousseff pelo governo norte-americano. "Novas informações sobre espionagem NSA indicam grau máximo de desrespeito à soberania do país", escreveu a ministra na rede de microblogs.

Maria do Rosário disse ainda que o Brasil é um "país soberano, democrático e que preserva direitos de seus cidadãos, repudiando práticas autoritárias e invasivas da privacidade". "A violação de informações de dirigentes e cidadãos de nações soberanas deve ser tema central das Nações Unidas. É violação também de Direitos Humanos", escreveu.

domingo, 1 de setembro de 2013

Bernard Cassen: Uma escola de torturadores nas Américas


“Pode ser um desgraçado, mas é nosso desgraçado”, teria dito Franklin D. Roosevelt sobre o ditador nicaraguense Anastazio Somoza. A fim de facilitar o recrutamento de perfis desse tipo na América Latina, o exército norte-americano logo imaginou uma escola não exatamente como as outras

Por Bernard Cassen*, no Le Monde Diplomatique


A região do Canal do Panamá não abriga apenas uma via de água transoceânica de importância vital para os Estados Unidos e o conjunto do hemisfério. É também uma verdadeira sucursal do Pentágono. Claro, o tratado de 1903 previa a presença armada dos Estados Unidos, visando “proteger” as instalações do canal. Mas, na verdade, a zona se transformou em sede da defesa hemisférica dos Estados Unidos, em base de intervenção nos negócios políticos dos países da América Latina e, por fim, em centro de formação militar de seus exércitos, principalmente através da espantosa instituição que é a Escola das Américas (Escuela de las Américas), por onde passaram todos os militares de alta patente dos exércitos da quase totalidade dos países da região.

Se o nome oficial da escola está formulado em espanhol, não é por respeito ao folclore do Panamá. Trata-se de uma política de hispanização deliberada, já que, depois de 1956, os cursos passaram a ser realizados exclusivamente em espanhol. Ligada à 193ª Brigada de Infantaria do Exército e fundada em 1946 como “Centro de Treinamento Latino-Americano”, ela recebeu seu nome atual em 1963, para refletir sua “vocação” hemisférica.

Enclave dos Estados Unidos

Toda a região do canal contrasta com o resto do Panamá. Os diversos veículos militares, as igrejas protestantes com todas as denominações, os gramados cuidadosamente podados, as lojas intituladas “Shoe Store”, “Home Furnishing Store”, as agências da Chase Manhattan e do First National City Bank: estamos sem dúvida num enclave norte-americano. Apenas a arquitetura dos quartéis e de outros prédios oficiais (datando em geral de muitas décadas) lembra a situação geográfica local. Antes de chegar ao prédio central, atravessamos loteamentos compostos de espaçosas casas térreas onde estão alojados os oficiais norte-americanos; seu nome e patente aparecem indicados na fachada. O capitão Chalmers, que nos recebeu em nome do coronel Bauer, comandante da escola em viagem à Nicarágua, tem mais o tipo de um intelectual do que de um aventureiro. Faz pensar no “americano tranquilo”, de Graham Greene. Ele nos anuncia de imediato que estamos em casa, que a escola não tem segredos. As horríveis histórias de cursos de tortura divulgadas principalmente pelo canal de televisão norte-americano CBS? Mentiras. Não, essa escola, por onde passaram mais de 33 mil militares latino-americanos, não é realmente um centro de formação da contraguerrilha. O catálogo de cursos que nos é amavelmente fornecido informa de maneira bem vaga que a missão do estabelecimento é oferecer “cursos fundamentais de formação profissional que se concentram nas aptidões críticas que geralmente são padrão na América Latina”.

Contraguerrilha

Esse documento, destinado aos assessores militares das embaixadas dos Estados Unidos e aos governos latino-americanos inscritos no programa de assistência militar, lembra uma brochura publicitária de venda por correspondência: os chefes do estado-maior estrangeiros podem escolher para os oficiais, suboficiais ou soldados que enviam à escola entre 37 cursos diferentes com duração variável (de 3 a 42 semanas). O produto final é garantido: “Você pode ter certeza de que antes que um estudante receba seu diploma ele deverá demonstrar aptidão em atingir os objetivos da instrução. Somos uma boa instituição e seremos ainda melhores”. Os países “clientes” (o termo aparece diversas vezes) podem até fazer sugestões, que serão levadas em consideração.

No plano “pedagógico”, a escola se divide em três departamentos: o de operações técnicas; o de operações de combate, onde se estudam a “formação em matéria de informações” e a “ação cívica”; e o de comando, no qual os alunos são principalmente formados em “defesa interna”. Mas o que cobre esse último conceito, perguntamos ao capitão. “Trata-se de dar aos países meios para combater a guerrilha. No passado, dávamos cursos de contraguerrilha urbana, mas não fazemos mais isso por causa da emenda Harrington.1 Tivemos de suprimir nossos cursos de polícia militar, que eram muito populares.” Simples questão de terminologia, pois o curso (táticas e técnicas de infantaria) “dá uma grande importância à ação cívica militar, às operações psicológicas, às táticas e aos conceitos das operações de contraguerrilha urbana e rural e às técnicas de informação militar”. O curso OE-8 (operações na selva), de três semanas, enfatiza sobretudo “as operações táticas defensivas e ofensivas de contraguerrilha”.

Inimigo interno

Para as autoridades da escola, não se trata de formar a elite dos oficiais da América Latina na defesa de suas fronteiras, mas na luta contra o “inimigo interno”. O capitão Chalmers tem um pouco de dificuldade em admitir a conclusão que submetemos a ele, mas confirma que entre militares de diversos países existe um grande sentimento de camaradagem e que alguns oficiais chegaram a “acertar por telefone, do Panamá, problemas que existiam entre seus respectivos países. Nós temos, inclusive, entre nossos antigos alunos, homens que ocupam hoje posições importantes, como o general Torrijos, o general Somoza, o general Pinochet...”.

A escola oferece uma formação ideológica? “Não”, ele nos responde. “Claro, no nosso curso de estado-maior, os estudantes podem discutir política, do sistema comunista ao sistema democrático. Nós apenas lhes apresentamos as doutrinas.” Citamos alguns exemplos de “veteranos” que se desviaram – pelo fato, sem dúvida, de terem assimilado bem o curso dado sobre democracia – e perguntamos: “O senhor considera os generais Pinochet e Somoza maus alunos?”. Sem hesitar, a resposta vem: “Não, pois não procuramos influenciá-los”. Ao percorrermos os corredores, ficamos boquiabertos diante dos painéis cobertos de fotos acompanhadas de legendas. Uma era destinada a sensibilizar os oficiais com as técnicas de infiltração. Uma foto mostrava um prisioneiro sentado diante de um oficial que o questionava. A atmosfera parecia mais uma conversa de botequim do que um interrogatório “físico”. A legenda, no entanto, deixa pairar dúvidas: “Interrogar os prisioneiros e os suspeitos para obter informações de valor, combinando este com outros métodos”.

Redes de solidariedade

De 1946 a 1976, 33.400 alunos frequentaram a escola. Em 1975, os efetivos totais foram de 1775. São os países pequenos ou médios que têm o maior número de ex-alunos: 4316 da Nicarágua, 3060 da Bolívia, 3016 da Venezuela, 3005 do Panamá, 2469 do Equador etc. Os grandes foram piores “clientes”: México (254), Brasil (346), Argentina (601). O corpo docente da escola também é multinacional. Em 1975, foram convidados, como “professores”, 22 oficiais e 20 suboficiais de 15 países, que instruíram os alunos ao lado de seus 45 a 50 “colegas” norte-americanos. Se, atualmente, não há mais instrutores mexicanos e costarriquenhos nem alunos vindos desses países, por outro lado o Brasil enviou oito “professores” (num total de 47 estrangeiros).

Assim, percebemos melhor a dupla razão de ser da Escola das Américas. Não se trata apenas de oferecer uma formação técnica para lutar contra os movimentos populares, única missão designada aos exércitos do hemisfério desde a época de Kennedy-McNamara. Convém também criar redes de solidariedade, de relações pessoais, entre oficiais norte-americanos e latino-americanos. Os brasileiros provavelmente só participam da elaboração dos cursos para estabelecer esse tipo de contato e garantir sua entrada nos exércitos dos outros países.

Ligações com o império

Nenhum esforço é medido para criar ligações estreitas com a metrópole imperial: viagens aos Estados Unidos, convites informais às casas dos instrutores norte-americanos etc. Imaginamos o impressionante arquivo que o Pentágono deve possuir sobre os oficiais “promissores” em cada um dos exércitos latino-americanos. As semanas de formação permitem observar de perto os talentos e as reações, eventualmente as fraquezas, de cada um. Uma vez diplomados, os alunos permanecem unidos à escola, quer dizer, a Washington, pelo sentimento de grupo − o pertencimento comum a esse clube relativamente fechado. Ninguém duvida que a CIA, garimpando nesse rico viveiro, não encontre material que “interesse” aos oficiais para futuras “desestabilizações”. Os US$ 5 milhões de orçamento anual da escola constituiriam assim um excelente investimento político.

No corredor de honra que leva àsala de reuniões e onde cada país-membro é representado por sua bandeira nacional, uma carta fica destacada, abaixo de um brasão de cobre. Endereçada ao comandante da escola, ela termina assim: “Pedimos consequentemente que aceite o reconhecimento do exército chileno, ao qual eu acrescento minhas sinceras felicitações pela obra de aproximação profissional que esse instituto realiza”. Ela data de 6 de novembro de 1973 e é assinada por Augusto Pinochet.


*Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.

Todas as vertentes da cultura são atendidas em Campos? “É mentira!”

Por Aluysio, em 01-09-2013 - 14h13

Como alguém que dedicou à militância nas artes os 43 últimos anos, dos 58 que tem de vida, com a bagagem dois FestCampos vencidos como poeta e mais de 100 peças montadas, inclusive no Rio de Janeiro, como diretor teatral, pode estar hoje desempregado e há um ano sem encenar nada numa cidade de orçamento bilionário e governada por um grupo político egresso do teatro? Na imitação tragicômica entre a arte e a vida, talvez nenhum caso pessoal encarne melhor o atual cenário da cultura de Campos do que o de Antonio Roberto de Góes Cavalcanti, o Kapi. Presente a todas as manifestações organizadas pelos artistas locais em protesto contra a denúncia de censura a “Bonitinha, mas ordinária”, de Nelson Rodrigues, no Trianon (relembre o caso aqui e aqui), ele foi também o primeiro a encenar uma peça no teatro hoje referência de Campos, quando este ainda estava só no esqueleto, em 1995, com “Gota d’água”, adaptação de Chico Buarque e Paulo Pontes da tragédia grega “Medeia”, de Eurípedes (480 a.C/ 406 a.C.). Ecoando quem inventou o teatro, a democracia e uma tal civilização ocidental, Kapi respondeu à presidente da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL),  a quem foram concedidos plenos poderes sobre a cultura pública de Campos. Se ela afirmou em entrevista que “todas as vertentes da cultura do município têm sido atendidas”, o diretor de teatro e poeta goitacá foi lacônico: “É mentira!”
(Foto de Rodrigo Silveira/ Folha da Manhã)
(Foto de Rodrigo Silveira/ Folha da Manhã)
Folha Dois – Você participou de todas as manifestações dos artistas de Campos, desde a denúncia de censura à peça “Bonitinha, mas ordinária”, de Nelson Rodrigues, no Trianon, por supostos motivos religiosos da prefeita Rosinha. Até agora, qual é o saldo?
Antonio Roberto Kapi - Apesar de muito blá-blá-blá e do individualismo da natureza ególatra do artista campista, como bem disse Soffiati (aqui), acho que o saldo é positivo, principalmente pelo debate suscitado através do face e das entrevistas dadas por artistas e intelectuais à Folha da Manhã. Por inúmeras vezes tentei unir os diversos segmentos da classe  artística para lutar em prol do bem comum, mas sempre me deparei com barreiras e suspeitas de que eu estava liderando movimentos em benefício próprio. Espero que desta feita o movimento sem lideranças vingue e seja vitorioso em suas reivindicações.
Folha – O professor e escritor Arthur Soffiati afirmou em entrevista que a discussão sobre a cultura de Campos importa mais do que aquilo que a gerou. Concorda? Por quê?
Kapi - Claro que sim. Essa política cultural (?) que vigora no município há muito,  é uma política equivocada, calcada no princípio romano da política do “pão e circo”, que leva diversão para o povo, não cultura e não contribui em nada para a formação e o crescimento do ser humano que aqui vive. Não que a população não tenha direito à diversão, mas cultura é bem diferente de lazer e a indústria cultural de massa tem meios eficazes de se perpetuar, não depende de verbas públicas, a não ser quando serve a outros propósitos. Acho que a censura a “Bonitinha, mas ordinária”, do genial Nelson Rodrigues, foi providencial ao mostrar a cara da pobreza cultural e da incompetência dos gestores desta política. Foi o detonador de um processo de indignação da classe artística.
Folha – Sobretudo após a entrevista de Soffiati, que embora não tenha sido o único, foi quem mais abertamente criticou também os artistas locais, alguns destes acusaram o golpe, chegando a questionar o próprio debate. Como alguém que milita no meio há mais de 40 anos, há como se pretender fazer cultura sem debatê-la?
Kapi - Há que se considerar o fato de que toda a classe é composta de diversos indivíduos, inclusive a artística, com os mais diversos níveis de formação e talento. Cada um reflete no seu processo de criação o que absorve do mundo. Esse embate depende basicamente de sua capacidade intelectual e deságua no exercício dialético do debate. Muitas vezes sem nem mesmo entendê-lo.
Folha – Essa reação negativa de alguns artistas teria sido apenas vaidade ferida por quem se viu criticado numa discussão da qual talvez se julgasse dono, ou poderia ser algo mais, como as dificuldades que a continuidade do debate podem ter gerado em projetos pessoais junto à FCJOL?
Kapi - A classe artística local é bem diversa. O único elo comum é a vaidade. Não creio em artista modesto. E essa vaidade muitas vezes faz com que o artista não meça esforços para dar vazão ao seu exibicionismo. Só que não tem como ser “Arlequim, servidor de dois amos”. Ou você serve à causa ou aos seus interesses pessoais.
Folha – A partir da denúncia de censura de Nelson, o poeta Artur Gomes propôs (aqui) encenar em protesto “O pagador de promessas”, de Dias Gomes, nos jardins do Trianon. Depois, Soffiati propôs a formulação coletiva de uma notícia-crime ao Ministério Público para se investigar o suposto superfaturamento dos shows. E, sobre uma proposta e outra, nenhum artista sequer se pronunciou. Falta coragem?
Kapi - Acho que a remontagem do “O pagador de promessas”, de Dias Gomes, ironias à parte, bem pertinente, até porque protestar pela arte fazendo  arte tem tudo a ver. Estamos juntos, Artur, pode contar comigo. Quanto à proposta de Soffiati, acho que “…não é que falte coragem, tá sobrando medo…”. Ninguém tá afim de dar a cara a tapa. Mesmo porque, falemos a verdade: se o Ministério Público de Campos quisesse de fato, já teria feito alguma coisa.
Folha – Também professor e escritor, Adriano Moura ressalvou (aqui) que “o artista não é apenas uma vítima no meio disso tudo”. Soffiati foi além ao afirmar: “Ele (o artista de Campos) está no poder não para atender ao público, mas para realizar suas ambições pessoais e para ter uma fonte de renda”. Via de regra, é isso mesmo?
Kapi - Como diz meu amigo Murilo Dieguez: “É cada um por si e Deus contra”. Mas se houvesse uma política cultural justa o artista se daria ao respeito. Pois respeito não se vende, não se impõe, se dá. Mas tentando sobreviver de sua arte, só se entregando ao que chamamos no teatro de caça níqueis.
Folha – Não só Adriano, Soffiati e Artur (aqui), mas também os professores Deneval de Azevedo Filho (aqui) e Cristina Lima (aqui), além do diretor de teatro José Sisneiro (aqui), foram unânimes em confirmar a existência da cultura do pires na mão, entre os artistas locais, em relação ao poder público. Acha que ela interessa mais a quem se acomoda em ser pedinte ou a quem escolhe se atende ou não? Há como mudar? Interessa mudar?
Kapi - Antes do advento do garotismo sempre se produziu cultura em Campos, em todos os segmentos. Cheguei a ganhar dinheiro fazendo teatro. À época, o único espetáculo que dirigi produzido pelo poder público municipal foi “Arena contra Zumbi”, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1988, quando da inauguração do Parque Alberto Sampaio, no governo de Zezé Barbosa, quando a cultura do município era vinculada a um departamento e comandada pela professora Diva Abreu Barbosa. Depois começou a ser implementada uma política cultural (?) calcada em eventos, pura e simplesmente. Houve um tempo em que tínhamos oportunidade de assistir aos consertos do “Projeto Aquarius”, em que a folclorista Ana Augusta Rodrigues capitaneava a cultura popular e nos induzia a respeitá-la e valorizá-la. Hoje temos o Milton Cunha a ditar regras, sabe-se lá a que preço, sobre nossas manifestações culturais mais genuínas. Vivemos num tempo que em muito nos faz lembrar o filme “Mephisto”, de István Szabó. Se há como mudar? Claro que há. Depende de vontade política. Afinal, o Fundo Municipal de Cultura foi criado pra quê? Com dotação orçamentária e editais que contemplem os diversos segmentos, é a forma mais democrática e justa de se implementar uma política cultural no município. Essa história de se criar demandas é pura balela, embromação. Tentando contribuir para a efetiva implantação do fundo, consultei um tributarista, que me esclareceu sobre a inconstitucionalidade de se atrelar a dotação ao IPTU e ao ISS. Mas com relação aos royalties não há impedimento legal, o que falta é vontade política. Mas a municipalidade vetou, por achar elevado, o percentual de 0,1% proposto por Vilmar Rangel ao elaborar a minuta do projeto de lei de criação do Fundo. O que daria algo em torno de R$ 500 mil ao ano. Só o cachê da Bethânia foi em torno da metade deste valor. E eles acham este valor elevado? Faz-me rir!
Folha – Você trabalhou no primeiro governo de Anthony Matheus, além das administrações Sérgio Mendes, Arnaldo Vianna e Alexandre Mocaiber. Que diferenças observou não só entre cada uma delas, como também naquilo que viu de fora nas gestões Rosinha, integrando o processo que Deneval chamou de “garotização” e julgou “péssimo” à cultura de Campos? Soffiati está certo ao considerar essa política cultural ao longo de 24 anos como “populista” e “autoritária”? Por quê?
Kapi - Em 1989, tudo era novidade. Minha geração chegara ao poder e entendíamos que a máxima teatral, “O espetáculo não pode parar”, deveria ser o lema de nossa ação. Trabalhávamos muito, até que fizemos com que ele (Anthony) fosse considerado um grande administrador. Mas depois dos dois primeiros anos, a máscara começou a cair. Já no governo de Sérgio podemos implementar uma política de cultura e de turismo verticalizada. Chegamos a trazer uma faculdade de turismo para Campos. Do segundo governo de Garotinho, me neguei a participar. Quando Arnaldo assumiu passamos a viver  uma fase de efervescência cultural, tanto no que tange à política cultural quanto à política de eventos em si,  no que pese a forma de fomento implementada. Já no governo Mocaiber,  tivemos a excelente atuação de Luciana Portinho à frente da cultura, que muito incentivou o artista local. Todas tiveram seus equívocos, erros e acertos. Mas nada supera o retrocesso, o populismo e a exclusão da política cultural (?) atual, que embora eu tenha em seu estafe pessoas do quilate de Orávio, de  João Vicente, de Leninha, concentra todo poder e a caneta nas mãos de quem nem sabe quem é Nelson Rodrigues.
Folha – Leu a entrevista feita com a presidente da FCJOL no site Campos 24 Horas (aqui), sobre as críticas que a política pública da cultura do município vem sofrendo? Entre outras coisas, ela afirmou que todas as vertentes da cultura de Campos têm sido atendidas. Concorda?
Kapi - É mentira! Somente uns poucos privilegiados têm acesso às benesses do poder. Com exceção das bandas de axé, de pagode e similares e algumas instituições que botaram a boca no trombone, todos estão à míngua, tentando fazer das tripas coração para exercer o seu mister.
Folha – A presidente da FCJOL também defendeu na entrevista a centralização de toda política pública da cultura de Campos em suas mãos, feita a partir da última reforma administrativa de Rosinha, num movimento criticado publicamente por Artur, Adriano, Deneval, Soffiati, Cristina e Sisneiro. Você, o que achou?
Kapi - Essa reforma administrativa foi um verdadeiro retrocesso. Não tem explicação lógica que a justifique. Quem é Patricia, no que tange à cultura? Qual a sua experiência enquanto gestora? Quem é ela face a Orávio e João Vicente? Com essa defesa, ela demonstra claramente porque está ocupando o cargo que ocupa. “Só se conhece verdadeiramente um homem quando ele detém o poder e legisla as leis”, como asseverou Sófocles, em “Antígona”.
Folha – Ausente na entrevista foi a pergunta sobre as denúncias de favorecimento nas contratações pela FCJOL da banda A Massa, cujo percursionista é marido da presidente da mesma FCJOL. Mas o fato é que também nenhum artista tocou no assunto, nem na reunião com a presidente, em 17 de julho, nem na Conferência Municipal de Cultura, três dias depois, ambas com a sua presença. O assunto é tabu?
Kapi - Não acompanho de perto as contratações da Fundação. Tudo que sei é através do face e considero esse um nepotismo deslavado. Consta que a denúncia contra Patrícia Cordeiro e seu marido, por improbidade administrativa, já está  feita no Ministério Público. Cabe, portanto, à prefeita e/ou ao Ministério Público abrir uma investigação para apurar os fatos e cumprir a devidas sanções. Se é tabu, temos que reivindicar que este seja quebrado.
Folha – Por falar na Conferência de Cultura, você perdeu a eleição de delegado para representar Campos na Conferência do Estado, em meio a vários indícios de irregularidade e manipulação no pleito, apontados (aqui) pela estilista Lívia Amorim. Por que essas denúncias não foram até hoje formalizadas à secretaria estadual e ao ministério da Cultura? É assunto posto? Sua eleição mudaria alguma coisa?
Kapi - Na realidade, eu estou eleito sim. Segundo Orávio, alguns participantes não oficializaram suas inscrições, o que levou a diminuir o número de representantes de três para dois, já que este deveria ser proporcional ao número de representantes da sociedade civil na conferência. Como ele correu atrás das pessoas para que estas se inscrevessem após o término da Conferência, a proporcionalidade passou de dois para três representantes. Afinal, eu já fui representante eleito da sociedade civil pela região Norte Fluminense no Conselho Estadual de Cultura. Devo ter alguma importância neste contexto.
Folha – Você é um dos principais defensores da implementação do Fundo Municipal de Cultura, aprovado desde o fim do governo Mocaiber e empurrado com a barriga nos cinco anos seguintes de governo Rosinha. Por que ele seria tão importante e como fazer para que finalmente se torne realidade?
Kapi - Como já disse, essa história de nós artistas criarmos demandas é pura balela. Acho lastimável que um governo cuja origem está nos palcos trate a cultura com tanto menosprezo.  Esperava mais de Orávio, um intelectual e agente cultural com um histórico invejável. Acho que ele comete alguns acertos quando o deixam trabalhar, mas com a experiência e o currículo que tem, vê-lo jogando o jogo dos contentes é deplorável. Se a política municipal de cultura estiver alicerçada no Fundo e gerenciada pelo Conselho, acredito que teremos uma política cultural de fato. Acho que só conseguiremos isso deixando as vaidades e os interesses pessoais de lado e nos unindo para pressionar o Legislativo a abraçar a nossa causa. Com certeza, quem abraçá-la estará bem na fita com a classe artística.
Folha – Deneval e Soffiati lembraram a necessidade de interação entre os agentes culturais e as universidades do município, muitas vezes isolados em seus saberes. Entre 1994 e 2005, você dirigiu o departamento de cultura da Faculdade de Odontologia de Campos (FOC) e há pouco concluiu uma bolsa na Uenf. Qual a importância desse diálogo e como ele poderia evoluir no município?
Kapi - Sou do tempo em que a educação formal se baseava em preceitos humanistas, o que muito contribuiu para a formação do cidadão que hoje sou. Quando Lusitano me convidou para atuar na FOC como diretor teatral, vislumbrei a possibilidade de implantar uma coordenação cultural que pudesse incutir nos alunos uma consciência humanística que os levassem a uma consciência critica de seu papel social enquanto profissionais. Deu super-certo. Implantamos oficinas de teatro, canto coral, artes plásticas, buscando uma interação escola/comunidade  que começou com a montagem de “Os órfãos de Jânio”, de Millôr Fernandes e culminou com a montagem de “O Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meirelles, que envolveu 100 pessoas em cena, entre alunos da FOC, da FDC e integrantes da comunidade do Matadouro. Já na Uenf, a visão tecnicista da educação dificultou um pouco a implementação de uma leitura humanista da formação acadêmica. Somente através da arte o ser humano é capaz de depurar sua sensibilidade. Não que todo mundo deva ser artista, mas a depuração da sensibilidade possibilita uma leitura mais humana do mundo.
Folha – Em seus tempos na FOC, você foi o primeiro a montar uma peça no Trianon, em 1995, ainda com o teatro só no esqueleto, sem teto. Como foi aquela encenação de “Gota d’Água”, adaptação de Chico Buarque e Paulo Pontes da tragédia grega “Medeia”, de Eurípedes? Cristina Lima disse sentir falta dos artistas de Campos no Trianon. E você?
Kapi - À época, embora integrasse o governo Sérgio Mendes, resolvi montar “Gota d’água” no Trianon no osso, como forma de protestar contra a morosidade da obra, além de provar que os artistas de Campos tinham condições e talento para ocupar aquele espaço. Na minha concepção o palco do Trianon estava para nós, artistas, assim como a casa própria para os operários. Após cada apresentação, fazíamos questão de ressaltar a importância da  obra para a arte campista. No Festival de Teatro Universitário daquele ano, ganhamos todos os prêmios e Angela Bastos, então colunista social da Folha, passou a se referir a mim como “o mestre Kapi” no jornal. Mas não foi somente “Gota d’água” que montei no Trianon. “Terror e miséria no III Reich”, de Bertolt Brecht;  “Sons do Planeta Blue”, de Beth Rocha; “O pássaro azul”, de Maeterlinck; “Os dragões não conhecem o paraíso”, de Caio Fernando Abreu; e “O Bruxo do Cosme Velho”, de Luciana Tavares, fazem parte do meu currículo naquela casa de espetáculos. Infelizmente o Trianon se transformou no grande detonador da produção cultural da cidade, com uma programação que em geral apresenta humoristas globais de qualidade duvidosa, do Zorra Total, um dos piores programas de humor da TV aberta brasileira. Quando não, é cedido para reuniões do estafe municipal, em pajelanças generalizadas, ou congressos e afins. O seu espaço deveria ser destinado exclusivamente para as arte.
Folha -  Ironicamente, a última peça que você dirigiu, há um ano, no Sesc, foi justamente “Nelson Rodrigues, o anjo pornográfico”. Na condição de quem mergulhou na vida e na obra do maior dramaturgo brasileiro, para reunir ambos no palco, como viu a denúncia da sua censura em Campos e a repercussão do caso em mídia nacional (aqui e aqui)?
Kapi - A sede de poder faz com que às vezes vassalos queiram ser mais realistas que o próprio rei. Não acredito que a iniciativa tenha partido diretamente de Rosinha. Muito menos de Orávio ou de João Vicente. Assim como não acredito nas desculpas esfarrapadas apresentadas para justificar o injustificável. Existe todo um estafe no Trianon capacitado para orientar os grupos e companhias que lá pretendem se apresentar. Se isso não ocorreu, alguém falhou e com certeza não foi o pessoal do grupo “Oito de Paus” (que denunciou a censura). Eu mesmo passei por uma situação no mínimo delicada, quando pretendi montar “Vestido de Noiva”, de Nelson. Quando souberam que eu estava ensaiando a peça, a então Fundação Teatro Municipal Trianon me solicitou o projeto, porque entendiam que o centenário de Nelson não poderia passar em branco. Apresentei o projeto e valores que seriam divididos com o Sesc. Fiquei aguardando até 15 dias antes da estréia prevista, com o contrato com o Sesc já assinado. Como não se dignaram a me dar uma satisfação, me vi obrigado a criar um texto, “Nelson Rodrigues, o anjo pornográfico”, para não descumprir  o contrato com o Sesc e, além de não receber, ter que pagar a multa devida por quebra de contrato. É uma falta de respeito total, ao teatro, aos artistas, à memória de Nelson. Acho que o Sated (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões) deveria se pronunciar emitindo uma nota de repúdio a esta situação.
Folha – Sobre sua direção de “Meu querido diário”, peça de Adriano interpretada por Yve Carvalho, no Teatro de Bolso, em 2009, a matéria da Folha Dois à época já alertava ao “ostracismo a que pretenderam relegá-lo os podres poderes da planície”. Como alguém com mais de 100 peças encenadas, inclusive no Rio de Janeiro, pode estar hoje desempregado e já há um ano sem montar nada numa cidade governada por um grupo político egresso do teatro? Seu caso resume o da cultura de Campos? E fere?
Kapi - Já estou acostumado com as adversidades. Nasci após três tentativas de aborto, de uma mãe tuberculosa. Há 16 anos adoeci, entrei em coma e sobrevivi sem seqüelas. Em 2009, após ficar desempregado, por apoiar a candidatura de Arnaldo à prefeitura, entrei num processo depressivo que resultou numa tuberculose, que levei três anos pra curar. Herdei de minha mãe a perseverança e sou bom de briga, no sentido figurado. Mas no momento, estou ensaiando “Zoo Story” , “A história do zoológico”, de Edward Albee, com Yve Carvalho e Luis Fernando Sardinha, sem apoio nenhum do poder público. Estamos tentando sensibilizar a iniciativa privada para podermos viabilizar o projeto. Afinal, vaso ruim não quebra, vira craquelê.