Para buscar prestígio e lavar dinheiro,
governantes de países sem tradição futebolística estão entre os
maiores investidores globais no esporte.
Por Irlan Simões, no
Outras Palavras
A Primavera Árabe,
que chacoalhou o Oriente Médio e o norte da África em 2011,
tornou-se acontecimentos do ano e provocou intenso debate. O Ocidente
observou incrédulo um grande número de governantes autoritários
sendo contestados, em países que durante longo tempo o mundo
“civilizado” ignorou. Apesar de suas particularidades, as
revoltas populares surgiram de razões comuns: as precárias
condições de vida e a ilegitimidade dos poderes
estabelecidos.
Curiosamente, 2011 também trouxe uma novidade
com sotaque árabe: os xeques nunca investiram tanto no futebol como
nos últimos anos. O problema maior talvez não seja a origem do
dinheiro: há muito, os petrodólares têm invadido o futebol mundial
de todas as formas. O que preocupa é a procedência dos
investidores.
Há diferentes tipos de relação entre os
poderosos do mundo árabe e o futebol. Nos países não-monárquicos,
como Líbia, Egito e Tunísia, havia uma lógica muito próxima à
dos regimes ditatoriais. Primeiro, o esporte serviu como instrumento
de controle e apaziguamento das tensões sociais. À medida que a
indústria do futebol foi crescendo, o jogo virou, também, caminho
para enriquecer. Na Líbia, que passou 40 anos sob o mando de Muamar
Kadafi, o ministro dos Esportes era seu filho, Al-Saadi Kadafi —
que ao mesmo tempo era jogador profissional pelo Perugia, da Itália,
e acionista da Juventus, maior clube da Bota.
Al-Saadi foi o
pivô de um caso de tráfico de influência dentro da FIFA, que
envolveu ninguém menos que Ricardo Teixeira e sua CBF. Kadafi
convidou a seleção brasileira para um amistoso em Trípoli, sob um
contrato que garantia 500 mil reais para a confederação brasileira.
O jogo não aconteceu, mas sabe-se que parte do pagamento foi parar
numa conta nas Bahamas, no nome do então técnico da seleção,
Mario Jorge Zagallo. Em 2003, a Líbia candidatou-se a sede da Copa
de 2010, perdendo para a África do Sul, que tinha ao seu lado o
imbatível Sepp Blatter, com dívidas a serem pagas com Nelson
Mandela.
No Norte da África, a Tunísia de Zine Ben Ali e o
Egito de Hosni Mubarak também figuram entre os países que buscaram
no futebol uma forma de manutenção de suas ditaduras. Nos
preparativos para a Copa de 2010, ambos foram elogiados por Sepp
Blatter, que os considerou concorrentes capacitados para sediar a
competição. Nem um pio sobre os direitos humanos dos seus
povos.
No Egito também estão dois poderosos empresários do
futebol: Mohamed Al Fayed e Assem Allan. Fayed é conhecido
mundialmente como o pai de Dodi Al Fayed, cineasta que morreu num
acidente automobilístico ao lado da sua namorada, a princesa Diana.
É dono do clube inglês Fulham. Assume publicamente que cresceu nos
negócios ao lado do comerciante de armas Adnan Khashoggi, seu
cunhado saudita. Já Allan, dono do Hull City, é conhecido por
negociar potentes hardwares para Forças Armadas de todo o
mundo.
Estados-família do petróleo
Outros exemplos
curiosos vêm das sete monarquias da Península Arábica (Emirados
Árabes Unidos, Qatar, Bahrein, Kwait, Arábia Saudita e Omã). Ricas
em petróleo, são governadas por famílias que se cultivam há
décadas no poder. Mantêm fundos soberanos que reúnem alguns
trilhões de dólares. E entre seus negócios está… o futebol.
A
família Al Maktoum, de Dubai, que controla a gigante Emirates Group,
é proprietária do clube Getafe, da Espanha. É também proprietária
da Fly Emirates, empresa de linhas aéreas, maior patrocinadora do
francês Paris Saint-German, do italiano Milan (o 9º maior da
história do futebol somando 11,5 milhões de euros anuais), e do
inglês Arsenal, tendo adquirido o name rightings de seu estádio,
que agora se chama Emirates Stadium.
Nada comparado à família
Al-Nahyan, que controla o emirado de Abu Dhabi, responsável pela
produção de 90% do petróleo dos Emirados Arabes Unidos. Um dos
integrantes da família real, Mansour Al-Nayhan, é o proprietário
da nova “surpresa” do futebol inglês, o Manchester City. O Abu
Dhabi United Group, ligado ao fundo soberano do país, já investiu o
equivalente a 1,2 bilhões de reais apenas em jogadores. Seu irmão
Hamed Bin Zayed Al-Nahyan, dono da Etihad Airways, é o principal
patrocinador do clube, comprando o naming rights do estádio City of
Manchester.
Mansour só não consegue explicar como convenceu
a FIFA a levar o Mundial de Clubes para um país que mal assiste
futebol e comentar sobre os 26 casos de tortura e assassinato que
envolvem o seu irmão Issa Bin Zayed Al-Nahyan em 2009.
Ainda
nesse grupo seleto de famílias poderosas que controlam a maior parte
da produção de petróleo do mundo encontram-se os Al-Thani, do
Catar. O país é uma monarquia absoluta que possui um conselho
eleito por poucos e sem muito poder de decisão. Entre os 35 notáveis
que compõem esse seleto grupo, está o ex-presidente da Confederação
Asiática de Futebol, Bin Hamman, que caiu após ousar disputar a
presidência da FIFA com o todo poderoso Blatter.
O Catar já
era notável por pagar os maiores salários já vistos no futebol do
terceiro mundo para estrelas em fim de carreira. Além disso, um dos
membros da família, Abdallah Ben Nasser Al-Thani, comprou o Málaga,
pequeno clube espanhol no qual já investiu 36 milhões de euros.
Ainda com a Qatar Sports Investment, Abdallah adquiriu 70% do Paris
Saint-German.
O feito mais surpreendente ainda está por vir.
Através da Qatar Foundation, a família Al-Thani tornou-se a
primeira patrocinadora da história do FC Barcelona, investindo valor
próximo a 170 milhões de euros, um recorde em negociações deste
tipo. O acordo gerou sério desconforto entre os conselheiros e
torcedores do clube, mas foi aprovado em dezembro de 2010.
Os
Al-Thani terão mais uma oportunidade de mostrar ao mundo a sua
imensa riqueza. A Copa do Mundo de 2022, pese a quase inexistência
do futebol no país, será disputada no Catar. A concorrente maior
era ninguém menos que a Inglaterra, que ao se recusar a pagar gordos
“incentivos” aos votantes do conselho executivo da FIFA, ficou
apenas com o choro dos derrotados.
A Arábia Saudita dos
Al-Saud, que reprimiu os ecos da Primavera Árabe, antes mesmo que
tomassem corpo, também tem notáveis relações com o mundo do
futebol. O príncipe Al-Saud já declarou que deseja comprar o
Panathinaikos, um dos maiores clubes gregos.
O xeque Saleh
Kamel, bilionário entre os mais ricos e amigo da família real
saudita, chegou a emprestar o seu jatinho particular para Sepp
Blatter passear pelo mundo árabe, em sua campanha de 2002. Há
fortes indícios que o membro saudita no Conselho Executivo da FIFA,
Abdullah Al-Dabal, vendeu o seu voto na escolha da sede da Copa do
Mundo de 2006 para a Alemanha. Nove dias antes do pleito, a pedido do
magnata das comunicações alemão, Leo Kirch, o chanceler e quatro
ministros aprovaram a venda de 1,2 mil mísseis anti-tanques para a
Arábia Saudita.
Fora do clube de produtores de petróleo, a
Jordânia, tem um representante da família real na condição de
vice-presidente asiático da FIFA. O principe Ali Bin Al-Hussein
venceu de forma surpreendente o sul-coreano Chung Mong-Joon, herdeiro
da dinastia Hyundai.
Sim, o futebol explica o mundo
O
que fica de lição, sobre as relações entre política, negócios e
futebol nos países árabes, é que o esporte precisa ser levado mais
a sério.
Um negócio que hoje movimenta mais de 300 bilhões
de dólares e representa 0,2% do PIB de uma economia como a espanhola
atrai interesses obscuros. Não pode ser discutido de forma tão
superficial como a adotada pela maior parte da mídia. Mas também,
pudera: praticamente inexistem meios privados de comunicação que
não tenham interesse no grande montante de dinheiro que entra e sai
do futebol. Seja de forma legitima ou ilegítima.
Para os
ditadores árabes, o futebol torna-se uma janela de entrada nos
negócios de todo mundo. Pese o preconceito e o receio de
transacionar com famílias envolvidas em negócios suspeitos, o
dinheiro sempre vence.
A liga inglesa, que optou por ser a
mais aberta do mundo, transplantando para o futebol o receituário
neoliberal para o futebol, sente hoje os efeitos da total
desregulamentação das transações ligadas ao jogo. Dos grandes
clubes ingleses que já estão na mão de investidores privados cinco
pertencem a magnatas norte-americanos, um russo, dois indianos e um
grupo chinês.
No caso dos tiranos, o futebol serve muito mais
como instrumento de status e “limpeza de imagem”que
necessariamente como um produto capaz de render retorno financeiro.
Isso pode explicar porque Mansour Al-Nayhan permitiu que o Manchester
City fechasse os dois primeiros anos em seu poder com uma dívida de
R$570 milhões de reais. Ou revela por que o xeque só compareceu a
um jogo nesses três anos – mesmo sendo proprietário de um dos
clubes mais tradicionais da Inglaterra, fundado em 1880 por ferreiros
de Manchester, então um dos motores da Revolução Industrial.