No momento em que o mundo alcança a marca de sete
bilhões de habitantes (em 31 de outubro), o fantasma de Thomas
Robert Malthus anda à solta outra vez. A imensa maioria dos
comentaristas faz uma relação imediata entre o tamanho da população
e a disponibilidade de alimentos, os mais argutos chegam a comentar o
modelo de desenvolvimento dominante, e a conclusão mais comum diz
que a Terra chegou a seus limites e que não cabe mais gente no
planeta.
O argumento de Malthus já causou alarme quando foi
publicado, em 1798 – e a Terra não tinha alcançado, ainda, a
marca de um bilhão de habitantes. A produção de alimentos cresce
mais lentamente do que a população e vai chegar um momento em que
faltarão alimentos para todos, dizia ele. Foi muito criticado já em
seu tempo. David Ricardo, um dos fundadores da economia clássica,
rejeitou aqueles argumentos como não científicos. Karl Marx foi
mais duro na crítica e considerou a argumentação de Malthus
fantasiosa, falsa e pueril.
Mesmo assim, ela atravessou o
tempo e hoje, mais de duzentos anos passados, ganha a força de uma
ideologia que parece comprovada pelo crescimento da população e
pelo fato de existir, no mundo, quase um bilhão de famintos.
A
Terra chegou mesmo a seu limite? Esta é uma pergunta legítima. Em
seu desenvolvimento os seres humanos são vítimas cegas e passivas
de condições naturais? Esta é outra questão que merece
reflexão.
A crítica marxista do argumento de Malthus
enfatizou que, tratando-se de seres humanos, as condições naturais
precisam ser consideradas no quadro do desenvolvimento cultural e
histórico. As relações que os seres humanos estabelecem entre si
na apropriação, produção e distribuição dos bens necessários à
vida condicionam sua relação com a natureza.
A maioria dos
raciocínios divulgados supõe que o desenvolvimento humano segue uma
linha reta e unívoca levando à repetição, no futuro, das mesmas
condições atuais. Daí os resultados catastróficos que apresentam.
Supõe, em primeiro lugar, a permanência da mesma hegemonia
capitalista de hoje, com seus padrões de acumulação e reprodução
do capital, mantendo inalteradas suas imposições de produção e
consumo. É uma base frágil para previsões de longo prazo!
A
base do catastrofismo está ancorada na tese de que o desenvolvimento
mundial vai conservar e repetir o mesmo padrão de consumo perdulário
que ocorre hoje nos países ricos. Atualmente, por exemplo, o consumo
de petróleo nos EUA corresponde a 10 litros por habitante, o dobro
do europeu (5 litros) e muito acima do chinês, que é de 0,8 litro.
Os países ricos consomem quatro vezes mais energia do que a China ou
doze vezes mais do que a América Latina. Em se tratando de
alimentos, a diferença é escandalosa, como indicam os dados sobre o
consumo de carne. Em 2007 cada norte-americano consumiu 127 kg, quase
dez vezes mais do que os haitianos ou senegaleses, com 13 kg; ou
quase 20 vezes mais do que os ruandeses, com seus meros 6 kg no ano.
Estas diferenças não são “naturais” mas geradas pela
forma como a produção e o consumo estão organizados. Na chamada
crise de alimentos de 2007, a revista Times reproduziu um
comentário significativo de Josette Sheeran, do Programa Mundial de
Alimentos. “Nós vemos comida nas prateleiras, mas as pessoas são
incapazes de comprá-la,” disse ela pondo o dedo na ferida. O
grande problema dos alimentos no mundo não é o excesso de gente mas
a subordinação de sua produção e comercialização aos grandes
interesses financeiros e especulativos. Quase todos os alimentos
estão submetidos ao mecanismo conhecido como mercado futuro; os
especuladores compram safras que muitas vezes ainda nem foram
plantadas para ganhar jogando com as variações dos preços no
futuro, e os preços disparam quando mais capitalistas entram nesse
jogo, disputando os ganhos previstos em apostas de crescimento
(especulativo) dos preços.
Outro aspecto é a especulação
com os estoques, como noticiou a revista Times em 2009:
“quando os preços das safras sobem, manter o estoque para a
próxima venda pode gerar lucros mais altos do que vender para
satisfazer a demanda atual. Ou se os preços divergem em diferentes
partes do mundo, o estoque pode ser transferido para o mercado mais
lucrativo”.
A especulação não faz parte, evidentemente,
das condições naturais – elas estão ligadas à ganância e à
busca de lucros máximos e incessantes cujo resultado é a fome
gerada não pela escassez mas pelo desemprego e pela pobreza.
Nesse
sentido, tem razão o diretor-geral do Fundo das Nações Unidas para
a Agricultura e Alimentação (FAO), Jacques Diouf, quando disse, em
2009, que a segurança alimentar é “uma questão de prioridade
diante das necessidades humanas fundamentais”. A fome resulta de
“decisões fundamentadas em motivações voltadas ao ganho
material, em detrimento dos referenciais éticos”, num mundo
desigual onde “um número restrito de pessoas enriquece cada vez
mais enquanto a maioria da população empobrece”, embora existam
os “meios econômicos suficientes, tecnologias eficazes e recursos
naturais e humanos para eliminar definitivamente a fome no mundo".
A
farsa de Malthus é uma ideologia atualizada e repetida à exaustão.
Ela esconde a defesa da manutenção do sistema capitalista e sua
imposição de ganhos crescentes. O dogma dessa farsa é uma
sociedade fixa e estática, cujas condições se repetem ao longo das
gerações. Mas, ao contrário, a sociedade humana muda ao longo do
tempo, altera a forma de organização da vida, da produção e do
consumo e acena, para o futuro, para novos passos civilizatórios
para atender às necessidades de cada um dos seres humanos. Nesse
sentido, não é a Terra que esgotou suas possiblidades, mas a forma
como a vida está organizada hoje, sob as imposições do modo de
produção capitalista e dos especuladores que o comandam. É o
capitalismo que chegou a seus limites e exige a ultrapassagem por uma
forma social superior.